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O outro lado da notícia

'Gritaria' contra planos de saúde levanta 'arquibancada', mas ignora realidade do mercado

Com os reajustes dos planos de saúde na ordem do dia, multiplica-se por aí a gritaria contra a "ganância" das seguradoras e das empresas de medicina de grupo. Sobram insultos também para a ANS, responsável pela regulação e fiscalização do setor, que autorizou um aumento de até 15,5% nos contratos individuais e familiares, para o período de maio de 2022 a abril de 2023.

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Por José Fucs
Atualização:

Até o presidente Bolsonaro, que se elegeu em 2018 dizendo ter se convertido em arauto do liberalismo e depois - de olho na reeleição - deflagrou uma cruzada intervencionista para tentar conter a disparada dos preços no País, deu o seu pitaco no assunto: "Aumentar 15% o plano de saúde? Eu tinha que falar um palavrão aqui e não vou falar", disse, em tom de indignação.

 Foto: Marcos Nagelstein/Estadão

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É a mesma lógica que está por trás das queixas contra a alta dos preços dos combustíveis, que seria o resultado do "lucro abusivo" da Petrobras, e contra a escalada dos preços do gás e da energia elétrica. No fundo, ela revela uma profunda falta de compreensão sobre o funcionamento da economia de mercado e expõe o quanto a crença de que o Estado deve ser o grande árbitro do sistema de preços está impregnada no País.

Obviamente, ninguém gosta de ser surpreendido com uma "paulada" na mensalidade do plano de saúde, que pode comprometer de forma considerável o seu orçamento mensal, ou na hora de encher o tanque e pagar a conta de luz. Ainda mais num momento de alta generalizada de preços, que corrói o poder de compra da população, como a que está acontecendo agora.

É sempre dolorido ter de adequar o consumo a uma nova realidade de mercado, abrindo mão, muitas vezes, de um produto melhor por outro que não é tão bom ou mesmo deixando de lado certas coisas, para fazer o mês caber no salário. Quase todos nós já passamos por isso e sabemos o que significa.

Ideologia. Agora, com todo o respeito pela causa, que diz respeito aos milhões de brasileiros que têm planos de saúde, a questão é bem mais complexa do que pode parecer à primeira vista. Para ter uma visão mais realista e mais equilibrada sobre o reajuste dos planos, é preciso ir além da superfície, deixar a ideologia de lado e procurar compreender os diferentes aspectos que envolvem a matéria.

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Primeiro, deve-se levar em conta que a inflação no setor de saúde, que reflete o aumento de custos de consultas, exames, terapias e internações, além da frequência com que os segurados procuram atendimento, foi bem maior do que a inflação média do País. Nos 12 meses encerrados em setembro de 2021, último dado disponível, a "inflação da saúde" acumulava uma alta de 27,7%, segundo dados do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), quase o dobro do reajuste autorizado pela ANS e quase três vezes mais do que a inflação medida pelo IPCA, calculado pelo IBGE, de cerca de 10% no mesmo período.

Em 2021, de acordo com os números do IESS, a demanda pelos serviços de saúde, que tinha caído de forma significativa no auge da pandemia, aumentou exponencialmente, com o aumento da vacinação e a redução dos casos graves de covid, o que acabou levando à alta considerável das despesas dos planos e ao reajuste "salgado" nas mensalidades.

Coparticipação. É preciso considerar também a conhecida profusão de exames e de consultas que muitos segurados costumam realizar. Não por acaso, as empresas do setor criaram planos com coparticipação dos usuários nas despesas, para que eles se sintam mais responsáveis pelo uso dos serviços médicos, laboratoriais e hospitalares.

Nestes planos, os segurados recebem um desconto nas mensalidades, que costuma chegar a 20% ou 25% dos valores das modalidades sem coparticipação, em troca do pagamento de uma pequena parcela dos gastos, geralmente uma quantia simbólica, que não chega nem perto da dedução recebida. A maioria, porém, prefere pagar mais, para ter direito à gratuidade total dos serviços.

Deve-se considerar ainda que, apesar da fiscalização cada vez maior das seguradoras, ainda há casos de fraudes no sistema, tanto de parte de segurados como de clínicas e hospitais, que sobrevalorizam o uso de medicamentos e materiais nos procedimentos e cirurgias, com efeito inevitável nos preços dos planos para todo mundo.

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Regras do jogo. Nesta quarta-feira, 8, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os planos de saúde não precisam cobrir os procedimentos não previstos pela ANS nos contratos e talvez isso tenha algum impacto nas mensalidades daqui para a frente. Mas, até agora, no Brasil, a percepção generalizada sempre foi de que os planos de saúde deveriam cobrir qualquer coisa - e a Justiça, especialmente na 1ª instância, costumava dar ganho de causa a quem questionava a legitimidade de eventuais exclusões por parte das seguradoras. O resultado é que a conta sobrava mais uma vez, de um jeito ou de outro, para todos os segurados.

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Mesmo os médicos acabam contribuindo para onerar os planos. Sou testemunha de um caso ocorrido há dez anos, em que, por iniciativa própria, um médico decidiu passar cinco minutos por dia no apartamento de um paciente que estava internado no hospital em que ele trabalhava. O profissional acompanhava o paciente em outra área e nem estava cuidando do problema que o levou à internação, mas mesmo assim resolveu bater ponto diariamente no quarto.

Só na hora da alta, os parentes descobriram que o doutor havia deixado uma conta de R$ 10 mil, referente às "consultas" que ele havia dado durante os vinte dias em que o paciente ficou internado, ao custo de R$ 500 cada uma. Quando questionado sobre a razão da fatura, ele não se fez de rogado: "Não é você quem vai pagar, é o plano".

Há, ainda, outras questões, como a ideia de que cada laboratório deve ter as suas próprias máquinas de tomografia e de ultrassom, mesmo sem uma demanda que justifique a compra das mesmas, para viabilizar a redução dos preços dos serviços, em vez de procurar concentrá-las em alguns endereços (municípios ou bairros, conforme o caso), com o objetivo de otimizar o seu uso.

Tudo isso - e mais um pouco - contribui inevitavelmente para aumentar a "inflação da saúde" e se reflete nos preços dos planos. Como diz a velha máxima popularizada pelo economista Milton Friedman (1912-2006), que já se tornou um chavão entre seus pares, "não há almoço grátis".

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É claro, porém, que, na hora dos reajustes, dá mais ibope disparar tiros de bazuca nas seguradoras e empresas de medicina de grupo. Isso levanta a arquibancada, gera arroubos de indignação na massa e rende cliques em abundância nas redes sociais. Obviamente, que elas devem ser fiscalizadas, para assegurar que operem dentro das regras do jogo. Agora, colocá-las na posição de vilão dos aumentos, com uma suposta conivência da ANS, é algo bem diferente.

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