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A responsabilidade pelos vícios do produto dos sites de leilão e pelo inadimplemento da obrigação

JOSÉ FERNANDO SIMÃO Advogado, mestre em direito civil, é assessor do Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), curador especial e professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP-SP).

Por Marcelo Moreira
Atualização:

No mês de julho, eu e Flávio Tartuce fomos convidados pelo Prof. José de Oliveira Ascensão para participar do curso de Sociedade da Informação promovido pela Faculdade de Direito de Lisboa.

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O tema que expusemos dizia respeito ao erro e vícios do produto na contratação eletrônica. Como item do debate, falamos da responsabilidade dos sites que promovem leilão virtual, ou seja, www.ebay.com ou, no Brasil, o Mercado Livre (www.mercadolivre.com.br).

Cabe, então, a reflexão se há ou não, relação de consumo entre o adquirente do produto e o site que promove o leilão.

Se identificarmos o site apenas como um locus de hospedagem da informação, assim como ocorre com jornais que fazem anúncios de produtos ou serviço, concluímos que não há um fornecimento de um serviço para os terceiros que adquirem produtos por seu intermédio. O site seria um terceiro estranho à relação de consumo.

Se, por outro lado, identificarmos o site como um co-fornecedor, sua responsabilidade será integral nos termos do CDC.

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Evidentemente, se estamos diante de uma empresa que, por meio da internet, vende produtos de outra e por isso recebe diretamente do destinatário final, dúvida não há que se trata de relação de consumo e o a responsabilidade da vendedora como comerciante (virtual) é evidente por força do art. 18 do CDC. Exemplos se multiplicam com sites como www.submarino.com.br, www.americanas.com.br, www.amazon.com, dentre outros.

Problema mais complexo se verifica, por exemplo, quando estamos diante de um site de leilão virtual. O objetivo deste tipo de site é a aproximação de pessoas que pretendem comprar e de outras que pretendem vender produtos por meio da internet.

Como em qualquer leilão, aquele que oferecer o lance mais alto, a partir de um lance mínimo estipulado pelo fornecedor, torna-se proprietário do bem.

O site Mercado Livre informa ao comprador que não cobra comissão pela venda do produto. Isso significa que nada recebe, então? Não.

Há duas tarifas cobradas, sendo uma apenas pelo anúncio e outra uma comissão pela venda. Claro, portanto, que o site não vive apenas de publicidade, mas recebe diretamente dos vendedores de produtos.

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Note-se que o próprio site de leilão virtual admite a aquisição imediata (primeira das assertivas), ou seja, simplesmente hospedando produtos que pertencem a terceiros sem que haja lanço ou disputa quanto ao preço.

Assim, nesta hipótese, só receberia o mercado livre a tarifa de anúncio. O termo tarifa está longe de ser jurídico, pois, na realidade, recebe uma contra-prestação pelo serviço prestado ao vendedor.

Surge então a questão: sites como o mercado livre ou E-bay respondem por vícios do produto vendidos por seu intermédio?

Se a resposta depender do site, a resposta é negativa: "MercadoLivre não outorga garantia por vícios ocultos ou aparentes nas negociações entre os Usuários.

Cada usuário conhece e aceita ser o único responsável pelos produtos que anuncia ou pelas ofertas que realiza: "MercadoLivre não será responsável pelo efetivo cumprimento das obrigações assumidas pelos Usuários". (Acesso em 5 de julho de 2009)

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Então temos uma segunda pergunta: essa cláusula unilateral exonerativa de responsabilidade civil é válida? Em se aplicando o CDC à relação mercado livre e consumidor (destinatário final) do bem virtualmente adquirido a resposta é negativa, pois o CDC diz ser nula a cláusula de irresponsabilidade (art. 51, I).

Como o Mercado Livre Brasil atua desde a publicidade dos produtos de vendedores até o oferecimento de suporte on line para a concretização da avença, a relação seria efetivamente de consumo. Na qualidade de fornecedor de serviço de intermediação, o Mercado Livre Brasil trava clara relação de consumo com o comprador-consumidor (Alexandre Gomide, 2009:191).

Para nós a solução da questão passa pela noção de coligação contratual ou de contratos conexos, bem como da teoria da aparência. Para Ricardo Lorenzetti, é relevante tal fato, pois permite a imputação de todos os membros da rede em hipóteses de responsabilidade por danos na relação de consumo (2004:387).

Sobre o fenômeno em questão, ponderamos que há duas ou mais espécies contratuais, unidas, entretanto, pela finalidade econômica unitária ou pela comunhão de uma operação unitária só.

Essa distinção entre contratos, mantido algum tipo de nexo de vinculação entre eles, é o que caracteriza o fenômeno dos contratos coligados, também chamados de união de contratos. Também se pode chamar o fenômeno de cumulação de contratos.

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Para nós, é clara a coligação contratual entre o contrato de fornecimento de um serviço no qual o site hospeda o produto oferecido pelo particular e para tanto é remunerado (contrato entre o site e o dono do produto) e o contrato de compra e venda (por preço fixo ou por leilão) estabelecido entre o dono do produto e o adquirente.

Há uma vinculação econômica evidente, pois apesar de os contratos não perderem sua autonomia, não havendo entre eles fusão, há uma unidade econômica que visa a aumentar a eficiência dos contratos.

Se determinada pessoa quisesse vender seu carro e criasse um site apenas para este fim, sua chance de realizar a venda se reduziria enormemente, pois o site se perderia dentre os milhões existentes (Podemos fazer analogia com a pessoa que coloca em seu veículo placa com dizeres: "Vende-se este carro" e apenas circula pela cidade). Já em hospedando a oferta no site especializado e pagando por isso, suas chances aumentam sobremaneira.

O Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu pela responsabilidade do site quanto a não entrega do produto vendido, por se tratar de um serviço defeituoso prestado ao adquirente, considerando, inclusive, nula a cláusula de exoneração de responsabilidade.

Nas palavras do Desembargador Relator, "portanto, ainda que se aceite a posição da ré de mera intermediária, é imperioso reconhecer que a sua atividade criou ambiente e condições ao dano sofrido pela autora, aproximando o vendedor desonesto do consumidor.

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Não fosse a atividade da ré a autora não teria estabelecido relações com o vendedor do bem. O risco é da ré porque ela teria proveito desse negócio" (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação n.º 1221137-0/1, 26ª Câmara de Direito Privado, Rel. Carlos Alberto Garbi, j. 04.02.2002.).

Para nós, é a aplicação direta da coligação contratual em que o inadimplemento de um dos partícipes gera consequências para os demais. O site de leilão responde pela não entrega, porque lucra com a atividade de oferecimento de produtos e desperta confiança no adquirente e, mais que isto, porque há uma "atuação concertada".

Francisco Paulo De Crescenzo Marino explica ser possível a oponibilidade do inadimplemento de "terceiros" na coligação com partes distintas. Em se tratando de atuação concertada, quer seja por modelos típicos de cooperação, parcerias com exclusividade, atuação na mesma sede, ou seja, havendo interesse comum dos agentes direcionado a, por meio de esforço comum, obter novos clientes e aumentar o lucro de cada um deles, o inadimplemento de um pode ser oponível a outro. (2009:206). Ressalta o autor que a atuação concertada é conceito indeterminado a ser preenchido no caso concreto.

Em conclusão, um maior poder econômico de um dos agentes implica maior responsabilidade e, portanto, a possibilidade de imputação da relação indenizatória em seu patrimônio, ainda que não seja parte de uma das relações jurídicas isoladamente consideradas.

O site, portanto, responde pelos danos causados aos adquirentes dos produtos. A relação é efetivamente de consumo e não civil.

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Isso porque, conforme explica Alexandre Junqueira Gomide, quando o mercado livre faz sua publicidade, a ideia inicial que se passa é que o próprio site comercializa os produtos.

Não há referência alguma que esses produtos não são de propriedade do Mercado Livre, mas sim de vendedores autônomos e que o site apenas faz a publicidade de bens de terceiros, não se responsabilizando sequer pelo recebimento da coisa.

O consumidor que recebe em sua caixa de entrada uma publicidade como essa, crê estar comprando produtos com a garantia da marca "Mercado Livre" (2009:201) Assim, analisando a responsabilidade pela qualidade do produto pelo prisma da teoria da aparência, poder-se-ia falar que o Mercado Livre Brasil responde também pela qualidade do produto de forma solidária com o fornecedor do produto.

Se efetivamente pretendesse ser claro com o consumidor, o site poderia utilizar um mecanismo pelo qual, em sua homepage, haveria um aviso com letras destacadas no qual informaria que não tem qualquer responsabilidade pelos produtos vendidos.

Essa singela informação não é colocada, pois isso significaria, certamente, perda de clientes e redução de faturamento. Chega-se a cogitar, eventualmente, se não haveria dolo por omissão nesta conduta, certamente desleal.

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E não é só. Por que a compra é feita pelo site Mercado Livro ou E-bay e não por um site qualquer de uma pessoa desconhecida? Porque o nome do site gera confiança em quem adquire o produto.

"Estou comprando em um site sério, no qual não terei problemas", pensa o adquirente. Essa confiança, ou seja, esta certeza que o site transmite de que não terá problemas e a confiança despertada são decorrência da boa-fé objetiva como norma ética de conduta. É o dever de lealdade, qual seja, não causar prejuízos imotivados ao outro contratante.

Com esta conclusão poderia surgir uma questão: por que quando a pessoa compra um bem anunciado em um jornal, o jornal não assumiria tal responsabilidade?

A resposta é simples. O comprador do bem anunciado em jornal tem clareza no fato que não há qualquer relação entre o anunciante (dono do produto) e o jornal em que a informação é anunciada. O jornal não recebe, em hipótese alguma, pagamento pelo bem vendido.

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