Mundo injusto. Se o pequeno cidadão não paga uma multa de trânsito de R$ 100, é devidamente punido: não pode licenciar o carro e circular ou dispor do veículo para vender ou trocá-lo livremente. E se eu ou você, leitor, não fizermos a inspeção veícular, igualmente, o mundo cai sobre nossas cabeças.
E um simples débito de R$ 10, cujo pagamento atrasamos, da mesma forma, nos leva ao pelourinho da Serasa e dos cartórios de protesto.
Resumo: só o ilícito da pessoa física "de pequeno porte" é alvo de todas as punições, quando não perseguições. Como pequenos cidadãos somos diuturnamente enquadrados e intimidados com um mundo de proibições para todo lado, num cenário de exacerbado moralismo e intolerância, do ponto de vista punitivo (e não educativo) com o cidadão, em especial aquele que não se vale de "jeitinhos" para escapar do arsenal irracional de sanções.
É fácil as autoridades (bem incluídas nestas as que gostam de aparecer) abordarem, oprimirem e intimidarem o cidadão anônimo e de bem, pois este não lhes oferece risco, revide, e cordatos apenas facilitam o "serviço" dos fardados ou portadores de insignas outras.
Mundo inusto. Pois enquanto isso, aberta e descaradamente o poder econômico ignora e dafia as leis, deixando claro que aos detentores do dinheiro o princípio constitucional da igualdade não se aplica. Nas chamadas relaçoes de consumo, pululamos exemplos desse escárnio ostensivo em relação à lei vigente.
Basta lembrar que as empresas privatizadas ou que atuam por delegação do Poder Público praticamente ignoraram a chamada Lei do SAC. E todas elas (privatizadas ou não) ao que parece nem chagaram a tomar conhecimento da Lei federal que proibi propaganda enquanto o consumidor aguarda para ser atendido ao telefone.
Sem contar as publicidades enganosos e abusivas que não param ser veículadas por muitos anunciantes, conforme constantes denúncias ao Conar, mais a venda de produtos com prazo de validade vencidas, etc, etc.
Basta ver ainda que mal acabou de ser criada uma norma sobre limitação dos abusos nos cartões de crédito e já se denuncia o descumprimento da lei pelos bancos, como noticiou o JT recentemente.
As empresas usam de três estratégias para detonar a legislação de proteção ao consumidor e escapar ilesas aos seus ditames.
Primeira estratégia: tentam barrar o cumprimento da lei de imediato, mediante a obtenção de medidas liminares perante à Justiça, e com isso conseguem matar a lei no seu nascedouro - são exemplos dessa estratégia, a norma que proibia a cobrança em estacionamentos de shopping center e a lei sobre a fila dos bancos na cidade de São Paulo, que foram para o espaço nos primeiros dias de vigência.
Segunda estratégia: quando as empresas não conseguem as liminares para fugir de imediato ao cumprimento da lei, lançam mão de outros mecanismos e recursos judiciais, e alegam que não estão cumprindo a legislação, porque aguardam a decisão da Justiça aos seus pedidos de suspensão da norma. E por fim, a última estratégia dos fornecedores é a desimplesmente ignorarem a lei, e ponto final ("lei, ora lei"!).
O caso mais desavergonhado, já tantas vezes exposto nesse blog, de afronta à lei pelas empresas é o da Lei de Entrega. Matéria assinada pela jornalista Gisele Tamamar no Jornal da Tarde noticia a guerra judicial das empresas para derrubar a Lei de Entrega, acompanhada da informação dos fornecedores de que aguardam a decisão judicial dos seus processos, enquanto, sem se preocuparem, deixam de atender às determinações de legislação citada.
Mas é bom ficar claro que enquanto não houver a concessão de liminares ou decisões da Justiça liberando as empresas do cumprimentos das leis, por inconstitucionalidade ou outro vício material ou formal destas, o simples fato de haver pedidos de suspensão da legislação tramitando perante o Judiciário não desobriga os fornecedores de darem o devido acatamente à lei, diferentemente do que vem ocorrendo, no caso de Lei de Entrega.
Já passou da hora de os órgãos públicos e associações civis de defesa do consumidor deixarem de fazer, por omissão, o jogo das empresas de flagrante afronta às leis de proteção aos consumidores.
Sim, porque não basta que os representantes das entidades protecionistas denunciem o descumprimento da lei apenas em pequenos informativos ou quando são provocados pela imprensa a falar sobre o assunto. A reiteração da afronta às leis de interesse do consumidor de há muito já demanda uma mobilização das entidades e órgãos que se proclamam dedicados à causa consumerista.
No caso da Lei de Entrega, o eschacho à legislação já passou do limite, dois anos depois da vigência desta. É necessário que juntos, Procon, Ministério Público (área do consumidor), mais Idec, Pro Teste, entre outras entidades,falem mais alto contra a escalada do desafio à lei. Ou isso a contece, ou ocorrerá, na prática, a revogação da legislação pelo desuso e pela indiferença de todos.
E nesse caso, para evitar o vexame, é melhor então pedirmos a revogação da lei, formalmente, à Assembléia Legislativa que a aprovou, e que também parece não estar nem aí para o descumprimento generalizado do diploma legal em questão. Afinal, chega de faz de conta com nossos direitos.
À reportagem do JT, o diretor do Procon, Paulo Arthur Góes, informou que um novo ranking das reclamações referentes à Lei de Entrega deve sair ainda este mês.
É pouco: o Procon deve abrir canal específico para reclamações contra o descumprimento da referida lei, tanto em relação às empresas do comércio virtual, como em relação aos demais fornecedores, e publicar o ranking das empresas infratoras semanalmente, a fim de que os consumidores fiquem sabendo, constantemente, quais as empresas que apresentam maior risco de deixá-los sem receber o produto adquirido e pago.
Finalmente, é importante destacar que embora não se faça defesa do consumidor somente com expedientes jurídicos, mas também com muita vontade de trabalhar, informar e mobilizar os consumidores, uma coisa deve ser feita no âmbito das leis.
Autoridades, entidades e órgãos de defesa do consumidorentendem que os mecanismos legais vigentes não são suficientes para dar segurança quanto ao cumprimento da legislação de proteção ao consumidor, então, que reivindiquem melhorias e alterações no aparato legal atual - mas o que não podem é assistir, sem aumentar a voz, o amplo e repetido desafio às leis protecionistas em vigor, como vem ocorrendo com a Lei de Entrega há cerca de dois anos.