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'Vivi com o golpe toda a minha carreira'

Em entrevista ao Estado, historiador americano explica em que 1964 foi diferente das outras tentativas de golpe

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Por Wilson Tosta
Atualização:

Entender 1964 tem sido um dos desafios profissionais do historiador norte-americano Frank McCann. “Vivi com o golpe toda a minha carreira”, conta o pesquisador, que era estudante da pós-graduação em História do Brasil na Universidade de Indiana quando o governo João Goulart caiu. Ele relata que ainda lembra de quando viu a foto do presidente Castelo Branco pela primeira vez no New York Times e afirma que acompanhou “obsessivamente” o noticiário da época, tentando compreender o que acontecia em seu objeto de estudo. Em 1965, saciou um pouco da curiosidade no Brasil, para onde se mudara com a família para pesquisar e preparar sua dissertação. McCann ainda se lembra de ler as manchetes sobre o AI-2, que acabou com os partidos, nas bancas da Avenida Rio Branco, no Centro do Rio de Janeiro. O ambiente, diz, era muito tenso, devido a rumores de uma rebelião de linha dura na Vila Militar.

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“Eu não tinha ideia, então, de que eu passaria muito da minha vida tentando entender os militares brasileiros", afirma

A seguir, os principais trechos de sua entrevista ao Estado: Antes de 64, o Brasil viveu várias tentativas de golpe militar de direita: 54, 55 , 61, além das Revoltas de Jacareacanga e Aragarças. Todas fracassaram . Por que a tentativa de 64 foi vitoriosa?

As tentativas de golpe anteriores a 64 fracassaram porque não foram suficientemente apoiadas por todas as Forças Armadas, porque faltou apoio civil em grande escala ou porque foram localizadas dentro de uma das Forças. Oficiais superiores e a elite civil culparam Goulart e seus aliados , como Brizola , da extensa agitação social em todo o Brasil. As imagens das manifestações das Ligas Camponesas no Nordeste permaneceram na memória dos opositores do governo. A discussão da necessidade de reforma agrária , da expansão da educação, do controle dos recursos naturais, foi considerada muito radical, de alguma forma contaminada pelo comunismo. A opinião pública foi manipulada para alimentar o medo. As elites civis e a Igreja Católica viram a ameaça vermelha à sua porta. Brizola falando em armar um tipo de milícia deixou as pessoas assustadas. O Brasil parecia prestes a explodir. Discussão racional, calma, dos problemas nacionais tornou-se rara. De onde veio o golpe?

Para mim, a grande questão é: por que os militares pensavam que tinham o direito ou dever de criticar publicamente , atacar ou depor um governo? Historicamente, eles têm dito muitas vezes que seus antecessores tinham deposto a monarquia e instalado a República, e tinham o dever de defendê-la e protegê-la. Claro que era uma responsabilidade autoassumida. Infelizmente, na República Velha políticos civis aparentemente encorajaram esse tipo de pensamento, de envolver os militares em seus esquemas partidários. A disciplina solta no Exército permitiu que oficiais acreditassem que eram os guardiães da República. A muito antiga prática de dar anistia a todos os envolvidos em revoltas diminuiu o autocontrole. Em 1904, 1922 e 1924, os rebeldes foram expulsos, mas depois de um tempo tiveram permissão para retornar e ter carreiras normais. Isso significava que os rebeldes não eram fortemente penalizados por sua rebelião. A instituição era muito insular, uma coisa à parte da sociedade, muito controlada pelo próprio corpo de oficiais . A estrutura das Forças Armadas tornou o controle civil extremamente difícil, se não impossível. Mas o que diferencia o golpe de 64 das tentativas anteriores?

Uma coisa que aconteceu em 54 , 55 e 61 foi que a intervenção dos militares levou à passagem da Presidência para outro civil . Em 64 não havia apoio suficiente para qualquer político civil. As figuras proeminentes foram, cada um, um pouco divisionistas, Carlos Lacerda  foi o mais divisionista. Antes do golpe, Castelo Branco tinha passado semanas de reuniões reservadas  com os líderes civis e ganhou sua confiança. Ao determinar a deposição de Goulart, os políticos civis pensaram que o golpe seria apenas empurrá-lo de lado, e um deles levaria o Planalto. Eles não sabiam que um conjunto significativo de oficiais passou a acreditar que seu caminho para servir à nação era dirigi-la. Claro que é necessário lembrar que foi um período quente da Guerra Fria, e os militares brasileiros estavam imersos na mentalidade do anticomunismo. Eles faziam um culto a 1935, a rebelião financiada por Moscou no Exército. Os generais de 64 tinham sido jovens oficiais em 1930 e abraçaram os mitos sobre 1935, como o de oficiais brasileiros assassinados durante o sono, o que não aconteceu, mas eles acreditavam. A falta de disciplina que mencionei anteriormente foi um fator que contribuiu para a revolta de 1935 . Oficiais legalistas afrontados pelos rebeldes derrotados riram quando eles foram levados para a prisão. Sem o cabo Anselmo e sem a reunião dos sargentos no Automóvel Club teria havido golpe?

Certamente o motim dos marinheiros e a revolta dos sargentos contrariaram e preocuparam os oficiais, que viram essas ações como quebra de disciplina. Foi bom para os oficiais insuflar a revolta , mas não para a tropa mais baixa. O cabo Anselmo foi, naturalmente , muito problemático, porque era um agente dos golpistas que agia como um provocador . Mas veja, realmente, todos os participantes no golpe estavam quebrando a cadeia de comando , quebrando hierarquia. Por que o suposto esquema militar de apoio ao presidente Jango falhou?

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Era muito pequeno, muito desorganizado e sem saber o que estava acontecendo até muito tarde. Eu suspeito que muitos oficiais acharam mais fácil apenas serem arrastados na corrente e não estavam dispostos a se opor a seus comandantes e colegas. Os militares eram um grupo coeso na ditadura ou havia divisões significativas entre eles?

Durante os anos militares, houve uma divisão, com aqueles que eram oficiais profissionais e não pensavam que governar o país era o seu papel (de um lado). Havia outros, menos comprometidos com a profissão de soldado, que foram corrompidos pelas oportunidades de remuneração extra e benefícios ilegais. Sem dúvida, houve alguns que gostaram dos papéis repressivos, da espionagem , do sigilo , na verdade talvez até gostassem de ferir os outros. Alguns, talvez por causa de sua educação limitada, não conseguiam entender que o que as pessoas que queriam era uma sociedade justa , com oportunidades reais de possuir terra , obter educação e expressar seus pensamentos. Lembro-me de, em 1976, um coronel em uma reunião em Brasília, que me disse que ele e seu irmão, também um coronel, mal podiam falar um com o outro, porque discordaram totalmente ao longo da "Revolução" . O irmão aparentemente justificava as prisões , desaparecimentos e torturas, enquanto ele acreditava que esse tipo de comportamento repressivo estava abaixo da dignidade de um oficial do Exército. Por que a transição política foi tão lenta, com a demora em desmontar o aparato repressivo, com o SNI, em contraste com países vizinhos, como a Argentina?

Boa pergunta . Acho que Geisel não sabia como domar o tigre. Talvez ele pensasse que, dando tempo suficiente, as emoções fortes iriam passar, e o discurso racional seria possível. Por que demoraram tanto tempo para desmantelar o SNI eu não sei, mas suspeito que era de alguma utilidade para Sarney. Provavelmente vai demorar muitos anos para que todos os arquivos sejam estudados. A Argentina foi um caso muito diferente. O Exército não tinha histórico de assumir o governo. O caso argentino foi mais brutal e ainda mais irracional do que o brasileiro. Foi uma sorte que os generais fossem loucos o suficiente para atacar as Malvinas e fossem derrotados pelo Reino Unido. Um dos grupo mais perseguidos, talvez o mais perseguido, durante a ditadura foi o dos militares. Houve 7.500 militares cassados. Ocorreu uma guerra à parte entre militares durante o período?

Sim, houve uma purga interna nas Forças Armadas. Estou certo de que muitos inocentes sofreram. O pensamento cego que passou no Exército sobre o comunismo é notável . Alguns oficiais que estavam simplesmente a favor da regra constitucional foram rotulados como radicais e, portanto, comunistas . O livro de Shawn Smallman, “Fear and Memory in the Brazilian Army and Society, 1889-1954” (Univ. of North Carolina Press, 2001) estudou os aspectos da purga . O livro de Maud Cahirio, “A Política nos Quartéis” ( Zahar , 2012) traça as lutas internas . As instituições militares sofreram com tudo isso e perderam um pouco de sua capacidade . Na Argentina, no Uruguai e no Chile, as ditaduras não foram nacionalistas nem estatizantes. Por que no Brasil os governos militares criaram e fortaleceram empresas estatais e mantiveram a legislação de direitos trabalhistas , além de tentar desenvolver alguns setores nacionais, diferentemente do que aconteceu em ditaduras vizinhas?

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Os militares brasileiros estiveram profundamente comprometidos com o desenvolvimento econômico por décadas. Eles costumavam dizer que um país pobre não poderia ter um bom establishment militar. Eles se sentiram no dever de desenvolver e melhorar o País, para que pudessem ter os meios para se defender adequadamente. Eles não queriam os recursos naturais do País em mãos de estrangeiros . Curiosamente, alguns oficiais me disseram que na década de 1990, quando conversaram com ex-comunistas , ficaram surpresos ao descobrir que eles queriam as mesmas coisas para o Brasil. Um coronel intelectual disse que pensou que a coisa toda, o golpe , o regime militar , tudo tinha sido um erro enorme. A tortura foi excesso de fanáticos e sádicos ou foi política de Estado, estimulada pelo topo da hierarquia?

O uso de tortura é algo que faz pouco sentido. Oficiais , mesmo seniores como o general Carlos Meira Mattos, a justificavam como a única forma rápida para encontrar o a bomba-relógio ligada. Mas a realidade é que havia poucas bombas em funcionamento, e pior que muitas pessoas foram torturadas semanas e meses depois de serem presas quando não poderiam ter nenhuma informação útil. Uma estudante minha de pós-graduação, Martha K. Huggins , fez dois estudos, “Political Policing: the United States and Latin America” (Durham: Duke University Press, 1998) e “Violence Workers: Police Torturers and Murderers Reconstruct Brazilian Atrocities” (Berkeley: University of California Press, 2002), que mostraram alguma influência americana no uso da tortura . Lembro-me de estar no Rio em 1969 e de relatos de americanos estarem presentes durante as sessões de tortura no quartel-general da Marinha. De meus estudos de história do Exército , eu diria que nenhum estrangeiro tinha nada a ensinar aos brasileiros sobre como torturar ou maltratar prisioneiros. É verdade que os brasileiros estavam longe de serem tão perversos quanto os argentinos ou chilenos no uso de tortura ou assassinato, mas isso não é algo de que se orgulhar . Alguns dos abusos foram protagonizados por pessoal das polícias militares estaduais, mas porque o Exército brasileiro colocou seus oficiais no comando de cada PM estadual, o que traz a responsabilidade de volta para o Exército. A tortura era generalizada. Claro que os leitores vão dizer que os Estados Unidos fizeram o mesmo contra supostos terroristas após o 11 de setembro. Infelizmente isso é verdade, mas eu acho que não foram os Estados Unidos , mas o governo de George W. Bush , que fez isso. Até onde sei, o Exército dos Estados Unidos não estava envolvido, pelo menos até o episódio da prisão no Iraque. Como cidadão americano estou profundamente envergonhado com o que o gangue de Bush fez. Agora, assassinato é algo ainda pior do que tortura. Sabemos a partir do caso da Casa da Morte de Petrópolis que as pessoas presas lá foram torturadas até morrerem e foram enterradas em segredo. Segundo a imprensa, os torturadores eram pessoal do Exército . Talvez mais vergonhoso de um ponto de vista militar foi o assassinato de prisioneiros no Araguaia. Em combate é matar ou ser morto , mas a honra militar exige que os prisioneiros sejam protegidos. Foram esses assassinatos encomendados? Por quem? Por quê? Parece que alguns oficiais generais estavam cientes de que isso estava acontecendo . É muito possível que Ernesto Geisel soubesse . O que fica do golpe para o Brasil de hoje?

A questão desde 1985 tem sido: como evitar que tudo aconteça de novo? É bom que presidente Dilma tenha proibido os militares de comemorar 1964 e o regime posterior , mas isso não é suficiente. As escolas militares deveriam estar ensinando sobre tudo isso como um exemplo do que os militares brasileiros não devem fazer. A melhor proteção para as Forças Armadas é ver o golpe como um erro grave. Não foi uma vitória sobre o comunismo, mas um ataque à democracia e ao Brasil como um país livre. Devo lembrar que as Forças Armadas de hoje não são as mesmas que as de 1964. Os instituições militares de hoje no Brasil são politicamente neutras e totalmente engajadas na sua missão de defesa nacional.

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