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Sob pressão popular e economia instável

Quando a Constituição de 1988 foi promulgada, o País vivia renovação após fim da ditadura, mas sofria com problemas econômicos

Por Pablo Pereira
Atualização:

Faltavam dez minutos para as 16 horas do dia 5 de outubro de 1988 quando o presidente da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), deputado Ulysses Guimarães (PMDB-SP), em pé, com a nova Constituição brasileira na mão, bradou solenemente: “Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia e da justiça social do Brasil”. E emendou: “Que Deus nos ajude que isto se cumpra”.

Há quase 30 anos, Ulysses e o Brasil davam por concluído um efervescente processo legislativo de mudanças, iniciado com a instalação da ANC em 1.º de fevereiro de 1987. Em 20 meses, os 559 constituintes, 29 deles biônicos, produziram 61.020 propostas de emendas parlamentares e 122 emendas de origem popular, resumidas naquilo que o próprio Ulysses cunhou como a Constituição Cidadã. “Que este plenário não abrigue outra Assembleia Nacional Constituinte”, declarou o líder do PMDB em tom dramático. E acrescentou: “Traidor da Constituição é traidor da Pátria”.

Populares acompanham votaçãoda mesa da Constituinte - 24/3/1087 Foto: ESTADÃO

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A retórica solene do experiente líder político se justificava pelo ambiente de aposta em renovação vivido nas ruas com execuções do Hino Nacional e mares de bandeiras verde-amarelas. O País se achava lavado e enxaguado de civismo e sofria com altos e baixos na economia. “Há sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar”, discursou o deputado.

Era o resumo de uma pressão exercida pela sociedade organizada em corporações, sindicatos e associações patronais e representações de trabalhadores, igrejas e ampla participação popular por meio de líderes tanto de comunidades afastadas como de grandes centros urbanos.

Uma das seculares garantias fundamentais, o habeas corpus, degolado na ditadura, voltava no bojo do instituto da emenda popular, apoiada por milhares de assinaturas nas ruas, como mandava o regimento interno da ANC. Anos depois, analisando o processo, parlamentares da época contavam como foi a pressão popular dentro do Parlamento.

“Eles (grupos militantes) vinham e ficavam na nossa bancada”, relatou em 2008, em entrevista a pesquisadores da Constituinte, o já falecido ex-parlamentar Plínio de Arruda Sampaio, citado no estudo Os Movimentos Sociais e a Assembleia Nacional Constituinte, do sociólogo Lucas Coelho Brandão, feito em 2012 na Universidade de São Paulo (USP). “De lá, subiam para as galerias e jogavam moedas no pessoal”, disse o deputado, lembrando das votações de temas como os direitos trabalhistas. “Então, os deputados da direita sumiram do Plenário. (...) Nós ganhávamos.”

Sobre o período, há ainda as histórias de deputados que até dormiam no prédio para atender às demandas sociais seguindo o rígido regimento da ANC. “As emendas ingressavam (na pauta) por ordem de entrada. Por isso eu, às vezes, dormia na Câmara, para ser o primeiro a entregar emenda”, contou o ex-deputado José Genoino aos pesquisadores. “A gente botava as emendas populares na frente.”

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Para enfrentar essa organização social, que usava as estruturas partidárias para emplacar suas demandas, surgiu o Centrão, articulação de parlamentares de centro-direita montada para reagir à crescente mobilização das esquerdas. 

Ulysses sabia que todo o esforço daquele trabalho não terminava com a promulgação. Dias antes, em setembro, o plenário da ANC havia aprovado, após 1.021 votações, o Projeto de Constituição D, texto que reunia a essência do momento político. Foram 474 votos favoráveis e 15 contrários, todos de constituintes do PT, além de seis abstenções.

A tarefa de consolidar interesses e lobbies – 10 mil pessoas procuraram diariamente o Congresso naquele período (1987-1988) – restava por ser ajustada. A ANC estava concluída, mas nascia um documento com DNA particular: já admitia em si uma primeira reforma após cinco anos. Derrubada a emenda do parlamentarismo, o acordo político da ANC ordenou que o tema devesse voltar à pauta em consulta por plebiscito, realizado em 1993 – e que terminou consagrando o presidencialismo. 

Balbúrdia. “Aquilo era uma polifonia, uma balbúrdia”, resume o tributarista Ary Oswaldo Mattos Filho, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), lembrando o que foi o ambiente das subcomissões e comissões temáticas e de redação. Ex-membro de grupo de especialistas encarregado de projetar reformas na Constituição na área dos tributos, Mattos Filho define o período como “um ambiente confuso”.

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Para exemplificar, cita a Emenda Gasparian (Fernando Gasparian, PMDB-SP), “que propunha a limitação dos juros em 12%”. Essa emenda passou na ANC e entrou na nova Constituição como Parágrafo 3.º do Artigo 192, aquele que trata do Sistema Financeiro Nacional. “O Centrão havia perdido uma votação, estava chateado por causa de uma briga com os bancos e votou com o limite dos juros”, lembra o tributarista, que já integrou grupo encarregado de projetar reformas na Constituição. Ou seja, o Centrão, contrariado, devolvia a pedrada descarregando votos na proposta de trava constitucional no juro. O limite de 12% foi abatido somente em 2003 pela Emenda n.º 40, que detonou a ideia ao manter só o caput do Artigo 192.

Para o professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP) Virgílio Afonso da Silva, a chamada ampla participação popular daquele período, porém, “não se transformou em ferramentas efetivas”. “Referendo e plebiscito não existem na prática. As leis de iniciativa popular foram absorvidas por estruturas de poder, como partidos convencionais.”

De acordo com o professor, é preciso lembrar que aquele Congresso foi eleito na esteira de altos e baixos da economia. O estudo de Coelho Brandão deixa claro esse impacto. Gráficos mostram que a inflação, que em 1985 batia em 239% ao ano (IBGE), fora derrubada pelo Plano Cruzado, do presidente José Sarney (PMDB), com congelamento dos preços e salários, para 59,2% ao ano.

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Nessa onda, o PMDB lavou a égua de fazer votos na eleição de 1986, exatamente a que escolheu os constituintes. O documento Resiliência Constitucional, da Fundação Getúlio Vargas, a propósito de análise daquele período, mostra que o PMDB “elegeu 306 dos 559 constituintes e 22 dos 23 governos estaduais em disputa”, perdendo só o de Sergipe para o PFL.

Em sua pesquisa, Coelho Brandão lembra ainda que os planos Cruzado 2 (novembro de 1986) e Bresser (abril de 1987) deram com os burros n’água, a euforia mixou e o dragão da inflação voltou com fome fechando os anos da Constituinte - 1987, a 394% (IBGE) e 415% (IGP-DI da FGV); e 1988, a 993% (IBGE) e 1.037% (FGV). E o PIB? Nesse período turbulento, relata o sociólogo, o PIB desabou de 7,85% (1985) para 3,53% (1987). E no ano da Constituição, o crescimento foi de 0,06%.