Relatos expõem ‘ciência’ da tortura na ditadura militar

Arquivo da Cruz Vermelha aberto após conclusão da Comissão da Verdade reforça tese de uso da repressão como política de Estado

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Por Jamil Chade - CORRESPONDENTE e GENEBRA
Atualização:

Sessões de espancamento acompanhadas por métodos para prolongar o sofrimento da vítima, um cronograma de ataques e até um jacaré colocado em celas. No regime militar, as práticas de torturas receberam um tratamento “científico” por parte dos autores dos crimes, segundo relatos contidos em documentos coletados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha em Genebra.

O ex-presidente da UNE, Jean Marc Von der Weid, foi torturado Foto: Ed Ferreira/AE

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O Estado teve acesso pela primeira vez aos arquivos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha sobre o Brasil em sua nova fase de abertura de documentos. Nos 17 mil informes registrados entre 1965 e 1975 guardados em Genebra, a entidade manteve dezenas de documentos sobre o período mais sombrio da ditadura no Brasil.

No auge da repressão no Brasil, nos anos 1970, o comitê atuou para tentar garantir os direitos humanos dos prisioneiros. Esses relatos, segundo a Cruz Vermelha, são uma evidência do caráter institucional que as violações tiveram durante o período de maior brutalidade da ditadura no País. A entidade jamais foi autorizada a visitar os centros de torturas.

Os informes não puderam ser consultados pela Comissão Nacional da Verdade, que concluiu seus trabalhos em dezembro de 2014, antes de a entidade ter aberto seus arquivos.

‘Método’. Em 21 de janeiro de 1970, o comitê apresenta documentos detalhados das práticas contra prisioneiros políticos, escritos em português por ex-prisioneiros ou fontes que aceitaram, de forma anônima, repassar à entidade informações.

Em praticamente todos eles, é o caráter organizado e “científico” da tortura que é destacado. “A grande maioria dos presos passa por um processo de torturas físicas, morais e psicológicas. De acordo com a gravidade do caso ou a pressa em se obter informações, são colocados em cubículo isolados, em celas isoladas ou em celas coletivas (em ordem decrescente se importância)”, diz o relato.

“O método aplicado é o científico. Baseia-se na aplicação dosada de um sofrimento atroz dentro do limite exato da resistência humana. Para tanto, os cuidados médicos são constantes, para verificar o grau de resistência do torturado e evitar alguma marca permanente (loucura, fraturas, cicatrizes). Mesmo assim, em vários casos o limite foi ultrapassado e registram-se desequilíbrios nervosos, loucura, crises cardíacas, surdez”, descreve. “Trata-se de uma luta para destruir – não a resistência física – mas a resistência moral do preso. A pressão física é apenas um veículo para a pressão moral. Ao mesmo tempo que se submete o preso a torturas, acena-se com o fim de tudo, se (o detido) falar.”

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Sequência. O ato de torturar não ocorria, segundo os documentos, de forma aleatória. “A tortura começa sempre com um espancamento. A fase seguinte é a do choque elétrico. “O aparelho utilizado é um telefone de campanha, de magneto.” O choque é aplicado simultaneamente ao “pau de arara”. Num outro relato sobre os “Tipos de tortura preferidos”, o documento aponta a “colocação de animais, como cobras, ratos e até um jacaré, na cela dos presos”.

Entre os torturadores, os relatos dos documentos da Cruz Vermelha apontam nomes citados pela Comissão Nacional da Verdade. Um deles é o Tenente Coutinho, “médico que controla cientificamente a tortura”.

Nos informes da Comissão ds Verdade, trata-se de José Lino Coutinho da França Neto. Ele prestou serviço militar na unidade da Marinha na Ilha das Flores (RJ), em 1969 e 1970, e teve participação em casos de tortura. Outro é Miguel Laginestra, apontado como “torturador frio, mas que prefere que os outros façam o serviço”.

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