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Reação à Lava Jato revive 'era mãos limpas'

Investida política contra operação segue roteiro visto na Itália com investigação a partir de 1992

Por Fabio Serapião
Atualização:

BRASÍLIA - As modificações no projeto das 10 Medidas Contra a Corrupção aprovadas pela Câmara dos Deputados na madrugada da quarta-feira e a tentativa do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), de impor urgência à votação da proposta escancararam o embate entre a classe política e a Lava Jato. 

Além de levar os procuradores da força-tarefa de Curitiba a sugerir uma possível renúncia aos cargos na investigação caso o presidente Michel Temer sancione o texto como está, as mudanças apoiadas pelos partidos, muitos deles com as cúpulas envolvidas no esquema de corrupção, guardam relação com o que ocorreu na operação Mãos Limpas, realizada na Itália na década de 1990 e sempre utilizada em comparações com a Lava Jato.

Senadores durante votação do pacote anti-corrupção Foto: Dida Sampaio|Estadão

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A investigação italiana começou em 1992, quando um diretor de instituição filantrópica de Milão foi preso. A partir da delação de Mario Chiesa – o Paulo Roberto Costa deles –, em dois anos, 2.993 mandados de prisão foram expedidos, 6.059 pessoas estavam sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares. 

No livro Operação Mãos Limpas – a verdade sobre a operação italiana que inspirou a Lava Jato, os jornalistas italianos Gianni Barbacetto, Peter Gomez e Marco Travaglio detalham o dia a dia da investigação italiana e revelam como a classe política tentou por várias vezes inviabilizar o trabalho do pool de investigadores e juízes.

Em uma das passagens do livro de 887 páginas, os jornalistas italianos relatam qual era o cenário em 1993, início do segundo ano da investigação: “Em menos de dois meses, entre fevereiro e março, o governo Amato (Giuliano Amato, presidente da Itália à época) perde seis ministros (...). Entre os partidos começa a circular uma palavra de ordem: ‘Solução política’ para a Tangentopoli (esquema de suborno). A investigação Mãos Limpas completou um ano e Palazzo (Palazzo Quirinale, residência oficial do presidente) tenta o contra-ataque: sabe que a opinião pública está do lado dos magistrados e o confronto direto não é possível. A maneira tradicional de conseguir anistia também é impraticável: em março de 1992, entrou a reforma do artigo 79 da Constituição, que elevou o quórum parlamentar para a concessão de anistia de 1/2 para 2/3. Então tenta-se uma intervenção de autossalvação com uma lei ordinária, quem sabe disfarçando-a de ajuda ao pool”, relata o livro lançado no Brasil pela editora Citadel.

Pacote Conso. Tanto a sequência de acontecimentos – a seguida queda de ministros – como a tática utilizada pelos políticos italianos são parecidas com a dos deputados brasileiros. Com base em uma proposta dos investigadores, os políticos legislaram de modo a criar empecilhos para a investigação. 

Na Itália, isso se deu por meio de quatro decretos e três projetos de lei que ficaram conhecidos como “pacote Conso”, em alusão ao ministro Giovanni Conso, então titular da pasta de Justiça no governo do presidente Amato. No Brasil, os deputados utilizaram o projeto anticorrupção para embutir propostas do interesse deles.

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O pacote Conso, entre outras coisas, possibilitava a descriminalização do financiamento ilícito, aumentava a possibilidade de negociação em casos de corrupção e extorsão, facilitava a vida dos empresários envolvidos no pagamento de propina e instaurava a confidencialidade das investigações. Tal como cá, as negociações para a aprovação dos projetos de lei e validação dos decretos do Executivo foram feitas a portas fechadas entre integrantes do governo e da “base aliada”. Quando descoberta, a tentativa de “impor limites” às investigações tomou a página dos jornais e levou os integrantes do pool de investigadores da Mãos Limpas a uma reação incisiva.

Da mesma forma, desde a aprovação na madrugada de quarta-feira, os políticos fizeram questão de defender as modificações, enquanto os procuradores, juízes e entidades de classe partiram para o ataque. 

Teste. Na Itália, a reação dos investigadores refletiu-se em manifestações nas ruas das principais cidades do país. O resultado foi a desistência do governo em bancar as propostas. No Brasil, o primeiro teste sobre como a população assimila a atuação do Congresso será hoje, quando estão previstas manifestações em várias cidades.

Entretanto, embora o pacote Amato-Conso não tenha prosperado, a classe política não desistiu. Nos anos seguintes, foram aprovadas várias leis que possibilitaram que muitos envolvidos em desvios passassem incólumes pela Mãos Limpas.

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