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O País do impeachment

A destituição de Dilma Rousseff enfraquece ou fortalece a democracia brasileira?

Por The Economist
Atualização:

Além de ter conquistado cinco Copas do Mundo e de abrigar a maior floresta tropical do planeta, o Brasil acaba de ganhar uma nova distinção: é o único País a ter aprovado o impeachment de dois presidentes em apenas 24 anos. No primeiro caso, o de Fernando Collor, que renunciou em 1992, quando estava prestes a ser condenado por corrupção, o processo contou com o apoio quase unânime dos brasileiros e foi visto como sinal de vigor democrático. No caso de Dilma Rousseff, que em 31 de agosto teve seu mandato cassado pelo Senado Federal, por 61 votos a 20, o País está bem mais dividido. Até entre os adversários de Dilma há quem considere que sua destituição põe em risco a democracia. O receio é que o Brasil tenha desvirtuado o dispositivo do impeachment, transformando-o em instrumento para tirar governantes impopulares do poder.

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Alguns dos argumentos com que Dilma tentou se defender diante dos senadores, na antevéspera da votação, eram mera peça de propaganda. Não, seu impeachment não foi golpe ― de tipo algum. O processo se estendeu por nove meses, em estrita conformidade com a Constituição e sob a supervisão do Supremo Tribunal Federal, cujos ministros foram, em sua maioria, indicados pela própria ex-presidente ou por seu antecessor e correligionário, Luiz Inácio Lula da Silva.

As transgressões de que Dilma era acusada ― o atraso em repasses do Tesouro Nacional ao Banco do Brasil e a edição de créditos de suplementação orçamentária sem aprovação do Congresso ― constituem crime de responsabilidade segundo a lei do impeachment, de 1950. Mas aí começam as dificuldades. Os defensores da ex-presidente têm razão quando dizem que ambos os pontos são questões técnicas, de importância relativamente menor. Os advogados que subscreveram a denúncia se prenderam a esses detalhes porque não havia provas de que Dilma estivesse pessoalmente implicada em atos de corrupção. Não se pode dizer o mesmo do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que, como alega plausivelmente Dilma, só acolheu o pedido de impeachment para se vingar, pois a petista teria se recusado a ajudá-lo a escapar do processo de cassação por corrupção de que o próprio parlamentar é alvo. Também é preocupante o fato de que muitos dos que votaram a favor do impeachment sejam acusados de ilegalidades. E é evidente que Michel Temer, um político de 75 anos mais afeito a articulações de gabinete, está longe de encarnar a regeneração de que a apodrecida política brasileira tanto precisa.

Acontece que isso não é suficiente para virar as coisas moralmente a favor de Dilma: durante uma década, muitos dos “golpistas” foram aliados (alguns tendo inclusive ocupado pastas ministeriais) da ex-presidente e de Lula. Sua corrupção, se comprovada, é de natureza venal e pessoal. Já a do PT, que organizou um vasto esquema de pagamento de propinas, centrado na Petrobrás, a fim de viabilizar um “projeto hegemônico que passava pelo crescente controle do Parlamento, dos juízes e também, se tudo desse certo, da própria imprensa”, como escreveu recentemente o jornalista e ex-deputado federal Fernando Gabeira em sua coluna no jornal O Globo, é uma corrupção de caráter mais sinistro. Dilma foi presidente do conselho de administração da Petrobrás (entre 2003 e 2010) e em seguida assumiu a Presidência da República, enquanto o esquema operava a todo vapor. Dizer que não sabia de nada ― e que tampouco estava a par de que na campanha presidencial de 2014 seu marqueteiro João Santana foi pago com recursos provenientes de propinas ― cheira a negligência.

Não foi o escândalo da Petrobrás, por si só, que derrubou Dilma. Quando, em dezembro do ano passado, Cunha deu início ao impeachment, poucos analistas políticos acreditavam que o processo seguiria em frente. O vagalhão que acabou por remover a petista do Planalto deveu-se inteiramente a sua incompetência e à insatisfação da opinião pública com sua desastrada condução da economia. Acima de tudo, Dilma foi incapaz de construir alianças no Congresso ― as quais nem sempre envolvem a troca de favores. A crise de governabilidade prolongou a desaceleração da economia, revertendo alguns dos avanços sociais conquistados durante o governo Lula. A renúncia de Dilma ou a convocação de novas eleições teriam equacionado a situação com menos desarmonia. Mas a petista se recusou a deixar voluntariamente o cargo e a antecipação das eleições era constitucionalmente complicada.

E é nesse pé que estão as coisas no Brasil. De onde se podem tirar algumas lições. Uma delas é que Dilma pagou o preço máximo por sua irresponsabilidade fiscal (cuja extensão ultrapassou em muito a minúcias contábeis usadas para condená-la). Isso deveria servir como advertência salutar para os políticos gastões da América Latina. A segunda lição é que os brasileiros querem cobrar os governantes por seus atos. Temer perderá toda a legitimidade se se render à pressão dos aliados para conter as investigações sobre o escândalo da Petrobrás ou ajudar Cunha a se livrar da Justiça.

A terceira lição é que o Brasil, com sua sólida tradição parlamentar, é um País em que nenhum presidente consegue governar contra o Congresso. Quando brande os 54 milhões de votos que teve na eleição de 2014, Dilma se esquece de que esses votos também foram dados a Temer e que o senadores exercem mandatos igualmente democráticos. Pode-se concluir, assim, que o Brasil acabou oferecendo um curso acelerado em teoria constitucional para líderes como Nicolás Maduro, o presidente ditatorial da Venezuela. O legado de um impeachment conflituoso não é de todo mau.

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