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O emaranhado de lobbies e interesses da Carta de 1988

Livro do jornalista Luiz Maklouf Carvalho reúne 43 entrevistas para mostrar em 503 páginas os bastidores da Constituição Federal

Por Pablo Pereira
Atualização:
A partir da esq., senador Mauro Benevides, presidente José Sarney, presidente do STF Rafael Mayer e Ulysses Guimarães no dia da promulgação da Constituição de 1988. Foto: Arquivo Senado Federal

Um senador furioso pegando o colega deputado pelo pescoço no gabinete para garantir voto, um general enquadrando o deputado-relator sobre a redação de um artigo, tucanos ciumentos disputando espaço dentro e fora do partido, além de petistas do contra pregando boicote geral enquanto lobistas escreviam artigos inteiros em defesa de interesses próprios na Carta Magna brasileira. São alguns dos bastidores da Constituição Federal, que completa 30 anos, contados pelo olhar revelador do jornalista Luiz Maklouf Carvalho no livro 1988: Segredos da Constituinte, editado pela Record.

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“É o resultado de cerca de um ano e meio, pelo menos, de pesquisa e apuração”, diz Maklouf. Manejando a pinça do perguntador cuidadoso e preparado, ferramenta que conhece bem de seu ofício de repórter, ele extrai relatos reveladores de manobras e acordos políticos, transcreve-os na forma de perguntas e respostas e vai chuleando as 503 páginas da obra com agulha e linha das verdades contidas em farta documentação e depoimentos sobre um ambiente tenso e decisivo para o País – fatos e posições que, a esta altura da história, já não sofrem a abrasão das paixões à flor da pele. 

A solene Carta Cidadã, legado maior do deputado Ulysses Guimarães, guia de decisões e fonte de citações nas sessões das quartas-feiras do Supremo Tribunal Federal (STF), é o resultado de intensa costura política e social de 20 meses, entre 1987 e 1988, quando ocorreram 1.020 votações na Assembleia Nacional Constituinte (ANC), formatando 245 artigos, mais 70 das conhecidas Disposições Transitórias. A sociedade buscava uma virada da página para um período de governo autoritário, que terminava sob o facão da carestia, mas carregava a esperança de que, pelo debate parlamentar, seria possível botar a cabeça para fora para livrar-se das crises institucionais.Desafio. Sem ter pisado no cenário da Constituinte, como diz logo na apresentação do livro, Maklouf leu tudo o que lhe apareceu pela frente sobre o assunto e enfrentou o desafio de catar detalhes da história em mais de 2,7 mil caixas do Arquivo e Centro de Documentação da Câmara dos Deputados. Mas tudo isso ainda era pouco. Para dar cores às cenas e amarrar credibilidade a sua empreitada, entrevistou quase uma centena de personagens. Destas, 43 entrevistas foram selecionadas.  Decidido a mostrar o interior do emaranhado de lobbies e interesses, referendados, obviamente, pelo Plenário da ANC, Maklouf oferece no livro o que ele chama de “o lado B” de um momento de forte mobilização nacional. O relato do episódio do senador baiano Antônio Carlos Magalhães, estressado, agarrando o carioca Francisco Dornelles, hoje governador do Rio, pelo colarinho para forçá-lo a votar no mandato de cinco anos – sem, no entanto, conseguir seu intento – e o caso do ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, que mandou oficiais buscarem o relator de Sistematização, Bernardo Cabral, para garantir a redação final de artigo das Forças Armadas, são pérolas polidas pelo autor na checagem direta com fontes de primeira mão.

Cutucando aqui e ali, Maklouf leva até o tucano Fernando Henrique Cardoso a classificar, na página 119, o ex-colega de partido e parlamento, Pedro Simon, como “maldoso”, “cupim da honra alheia”, “provinciano” e até “irresponsável”. “O livro dá uma contribuição ao mostrar que houve na Constituinte um quadro que não deixa de ser feio, com conchavos, lobistas escrevendo artigos”, diz Maklouf. No largo rol dos depoimentos, há ainda memórias de conteúdo econômico da lavra, entre outros, de Maílson da Nóbrega, Luiz Carlos Bresser-Pereira, Delfim Netto e José Serra, além de lobistas, como o advogado Fernando Ernesto Corrêa, que reivindica para si a redação de artigos feitos a quatro mãos com o então deputado Antônio Britto. E de juristas, como Miguel Reale Júnior, o advogado do impeachment de Dilma Rousseff. Reale fala não só de própria atuação na antessala da Constituinte. Conta também como o substituto de Dilma, Michel Temer, entrou na vida política. “De certa forma, fui eu que viabilizei a vinda dele para o mundo político”, afirma Reale a Maklouf.Presidentes. O livro compõe um quadro fundamental para o entendimento da Constituição, um texto legal que “tem fôlego para mais algumas décadas”, segundo o autor. Ele afirma que “gosta muito” do resultado da entrevista com José Sarney, que abre a série de depoimentos. “Se não fosse a minha intervenção, a Constituição não teria saído”, crava o ex-presidente. “Ele finalmente se abriu”, arremata Maklouf, comentando a posição de Sarney. Naquele momento, o então herdeiro do poder de Tancredo Neves, o presidente que nunca assumiu, tentava emplacar para si um mandato de cinco anos na Presidência. Porém, diante do impasse político surgido na ANC, lembra o pesquisador, que ameaçava travar o País, tentou a saída do parlamentarismo – prontamente abatido por um outro linha de frente da época: Mário Covas.  “Aquilo teria mudado o Brasil pra sempre, seria parlamentarismo”, argumenta José Serra (Pág. 163), um dos líderes que à época seguiu Covas. “Olhando hoje”, diz Serra, no livro, “tenho imenso arrependimento de eu mesmo não ter posto a boca no trombone, falando a favor”, lamenta. Ao livro falta, porém, pelo menos uma personalidade da política de lá e de cá: o líder petista Luiz Inácio Lula da Silva, então deputado. Essa ausência não ocorre por culpa do autor, obviamente. Lula foi procurado por Maklouf mas recusou-se a falar. E perdeu a chance de comentar o gargalo institucional pelo qual o País passou, apertado, após a reação política na ANC que resultou no Centrão e também de justificar, por exemplo, por que seu grupo votou contra e, inicialmente, se negou a assinar a Constituição – que mais tarde, em 2003, ele próprio juraria ao tomar posse como presidente da República.

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