Ministério da Justiça quer alterar regras de demarcação de terras indígenas

Mudança pode paralisar pelo menos 280 processos em andamento no País e fragiliza terras já demarcadas

PUBLICIDADE

Foto do author André Borges
Por André Borges
Atualização:

BRASÍLIA - O Ministério da Justiça tem nas mãos uma “Proposta de Regulamentação da Demarcação de Terras Indígenas” que pretende alterar radicalmente o processo de reconhecimento dessas terras de povos tradicionais, além de paralisar pelo menos 280 processos de demarcação que estão em andamento em todo o País.

Uma das mais polêmicas propostas incluídas na minuta do decreto que já está no gabinete do ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, muda o processo de desocupação de áreas onde haja presença de não-índios. Pelas regras atuais, o governo propõe indenizações financeiras a donos de propriedades rurais, quando estes estão dentro de áreas que são reconhecidamente terras indígenas. O que o novo decreto prevê é que, agora, os índios sejam indenizados e não voltem mais para as terras.

Aldeia Terrawangã, na terra indígena Arara da Volta Grande. Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

PUBLICIDADE

A proposta também fragiliza terras que já foram demarcadas, abrindo espaço para essas áreas sejam contestadas por pessoas que pleiteiem o mesmo espaço. Para organizações que atuam na defesa dos povos indígenas, as mudanças praticamente acabam com os direitos previstos no decreto 1.775, publicado 20 anos atrás pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, abrindo espaço para o avanço de projetos de infraestrutura e do agronegócio em terras indígenas.

Pelo novo texto, passa a valer o critério de “marco temporal” para reconhecimento das áreas. Essa regra estabelece que apenas os povos indígenas que ocupavam ou disputavam áreas em 1988, ano de promulgação da Constituição, podem ter direito a ela. Fora isso, nada mais é válido.

“O decreto tem a clara intensão de paralisar por completo os mais de 280 procedimentos em curso, rifando os direitos constitucionais indígenas”, disse Maurício Guetta, advogado do Instituto Socioambiental (ISA). “A inclusão da tese do ‘marco temporal’, onde os índios só teriam direito às terras efetivamente ocupadas em 5 outubro de 1988, na data da promulgação da Constituição, é medida absurda e temerária, pois pode gerar a nulidade de procedimentos já concluídos, trazendo ainda mais caos aos conflitos do campo.”

Grupos indígenas estão mobilizados para fazer manifestações em Brasília nesta semana. Para lideranças, o governo tenta aprovar um atalho à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que retira do governo o poder de demarcação das terras, repassando essa atribuição ao Congresso Nacional.

“O conteúdo do decreto é desastroso para os povos indígenas. Sua aplicação inviabilizaria cerca de 80% das demarcações das terras indígenas. Isso responderia aos interesses e objetivos que os ruralistas almejam também por meio da PEC 215”, comentou Cleber Buzatto, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “A forma sorrateira com que o decreto está sendo elaborado demonstra que o governo Temer se constituiu num instrumento a serviço dos interesses do agronegócio contra os direitos dos povos indígenas no País.”

Publicidade

Questionado sobre o assunto, o Ministério da Justiça afirmou, por meio de nota, que “não tem conhecimento das afirmações feitas pela matéria do jornal”.

Veja abaixo a íntegra da minuta do decreto que está em avaliação no Ministério da Justiça:

“Proposta de Regulamentação da Demarcação de Terras Indígenas Exposição de Motivos A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, no Artigo 231, que são reconhecidos aosíndios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,competindo à União demarcá-las. A Lei 6001 de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, em consonância com a Constituição, define que as terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio – a FUNAI – serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo. Para isto, foram editados sucessivos decretos: Decreto nº 76.999, de 8 de janeiro de 1976; Decreto nº 88.118, de 23 de fevereiro de 1983; Decreto nº 94.945, de 23 de setembro de 1987; Decreto nº 22 de 04 de fevereiro de 1991; Decreto nº 1775, de 8 de janeiro de 1996. O Decreto nº 1775, que completou 20 anos em 2016, é o mais recente a regulamentar o procedimento de demarcação das terras indígenas e foi o resultado de uma evolução apontada pela Associação Nacional dos Procuradores da República em manifestação sobre a PEC 215/2000(Nota Técnica ANPR nº 008/2012):  O procedimento de demarcação de terras indígenas (TI) é historicamente conduzido e executado pelo Poder Executivo, em observância à lei decretada pelo próprio Congresso. O exercício desta competência e a regulamentação da matéria desde 1976, com seguidas atualizações de decretos, resultou no aperfeiçoamento do processo administrativo no que se refere à especialização da equipe responsável, ao objeto dos estudos requeridos, à amplitude de participação de atores governamentais e civis e às instâncias de tramitação do processo. Também em manifestação sobre a PEC 215, o especialista Daniel Sarmento apresenta o entendimento de que “a demarcação de terras indígenas é um procedimento que envolve juízos técnicos, de natureza altamente complexa. O Poder Executivo tem os quadros com a expertise necessária para adotar decisões nesta área, mas não o legislativo (...)” e demonstra que o Decreto 1775 estabelece um procedimento adequado, e que “todo o procedimento se desenvolve sob o signo do contraditório”. Quanto ao princípio do contraditório, a Consultora da FUNAI, Érika Yamada, em trabalho para a Procuradoria Federal Especializada da Fundação (Análise Jurídica da Demarcação Administrativa das Terras Indígenas no Brasil) diz que: O Estatuto do Índio, Lei 6001 de 19 de dezembro de 1973 e o Decreto 1775 de 08 de janeiro de 1996 estabelecem o atual procedimento de demarcação administrativa das terras indígenas tradicionais; este último revogou um decreto anterior, o decreto 22/91, instituindo o denominado “princípio do contraditório” nos processos demarcatórios. Esse procedimento contraditório permite que terceiros interessados se manifestem a respeito da área identificada pela FUNAI, antes do término do ato executivo. Visa-se a que eventuais vícios ou erros do ato sejam sanados ainda na fase administrativa evitando-se o ensejo de infindáveis discussões frente ao Judiciário. Contudo, em casos de conflitos entre a identificação de terra indígena pela FUNAI e os interesses levantados por particulares, Estado e município em que se encontra a terra, não há clareza quanto aos procedimentos de resolução da disputa a cargo do Ministro da Justiça. De acordo com Decreto 1775/96 cabe ao Ministro da Justiça decidir se a identificação da terra indígena, e os limites propostos pela FUNAI atendem ao dispositivo constitucional de proteção a terras indígenas, mas não versa sobre a competência para resolver conflitos de interesses. (...)  Ainda em relação ao princípio do contraditório na Administração Pública, e considerando que o procedimento de demarcação de terras indígenas é um procedimento administrativo, deve ser lembrado que, após a edição do Decreto 1775/1996, foi publicada a Lei nº 9784, de 29 de janeiro de 1999, que “regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal”, que estabelece que: Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I - atuação conforme a lei e o Direito; II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei; (...) V - divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na Constituição;  VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público; (...) XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação. Considerando que o Decreto 1775 deve atender ao disposto na Lei do Processo Administrativo, há necessidade de atualização do mesmo em relação à melhor consideração do princípio do contraditório, ao atendimento do fim público e à adequação entre meios e fins. A adequação entre os meios e os fins, preconizada na Lei do Processo Administrativo, deve ser realizada compatibilizando os direitos humanos previstos na Constituição Federal, aplicando-se o princípio da proporcionalidade. Se, por um lado, o constituinte originário procurou assegurar às comunidades indígenas a posse das terras indispensáveis ao seu bem-estar e à sua reprodução física e cultural, por outro estatuiu os direitos sociais – a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados (Art. 6º) – como um dos “valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”, de acordo com o Preâmbulo da Constituição. A Constituição também enumerou, entre os fundamentos da República Federativa do Brasil (Art. 1º), a cidadania e a dignidade da pessoa humana, além de definir como objetivos fundamentais da República (Art. 3º):  I. construir uma sociedade livre, justa e solidária; II. garantir o desenvolvimento nacional; III. erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV. promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.  Assim, para garantir a harmonia social em uma sociedade fraterna e pluralista, deve haver a solução pacífica das eventuais controvérsias entre direitos indígenas e outros sujeitos de direitos sociais, notadamente aqueles grupos menos privilegiados que receberam menção direta ou indireta na Constituição e em normas infralegais, tais como: I. Os trabalhadores rurais da pequena e da média propriedade, que nela morem e cultivem a terra; II. Os trabalhadores das partes ocupadas e produtivas de assentamentos de reforma agrária; III. Habitantes de assentamentos humanos ocupados predominantemente por população de baixa renda em áreas urbanas consolidadas (Código Florestal); Quanto à necessidade de solucionar a ocupação de parte de terras indígenas por grupos como os acima descritos, há previsão de reparação às comunidades afetadas na Declaração da ONU sobre os Povos Indígenas (2007): Artigo 28 1. Os povos indígenas têm direito à reparação, por meios que podem incluir a restituição ou, quando isso não for possível, uma indenização justa, imparcial e eqüitativa, pelas terras, territórios e recursos que possuíam tradicionalmente ou de outra forma ocupavam ou utilizavam, e que tenham sido confiscados, tomados, ocupados, utilizados ou danificados sem seu consentimento livre, prévio e informado. 2. Salvo se de outro modo livremente decidido pelos povos interessados, a indenização se fará sob a forma de terras, territórios e recursos de igual qualidade, extensão e condição jurídica, ou de uma indenização pecuniária ou de qualquer outra reparação adequada. Assim, para a conciliação de direitos humanos de grupos igualmente marginalizados historicamente, o processo de demarcação de Terras Indígenas deveria levar em conta este princípio de instrumento internalizado no direito brasileiro, durante o processo de demarcação, em fase de consulta aos povos indígenas interessados quanto à indenização sob a forma de terras e recursos. No célebre julgamento sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu uma série de condicionantes como balizadoras da posse permanente dos povos indígenas sobre aquela Terra. Não obstante, os Ministros do STF têm se manifestado em diversas ocasiões sobre a validade daquelas condicionantes para outras demarcações, como fez a Ministra Cármen Lúcia em seu voto no RMS 29087/DF:  Assim, conquanto se tenha recusado a eficácia vinculante formal deste julgado, fixou-se que os pressupostos erigidos naquela decisão para o reconhecimento da validade da demarcação realizada em Roraima decorreriam da Constituição da República, pelo que tais condicionantes ou diretrizes lá delineadas haveriam de ser consideradas em casos futuros, especialmente pela força jurídico-constitucional do precedente histórico, cujos fundamentos hão de influir, direta ou indiretamente, na aplicação do direito pelos magistrados. Neste Recurso Ordinário também foi reiterado que: A data da promulgação da Constituição Federal (5.10.1988) é referencial insubstituível do marco temporal para verificação da existência da comunidade indígena, bem como da efetiva e formal ocupação fundiária pelos índios.  Outro ponto em que merece ser atualizado o Decreto nº 1775/1996 é com relação ao que dispõe a Lei nº 12527, de 18 de novembro de 2011, a chamada “Lei de Acesso à Informação”, incluindo o seguinte:  Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:  I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção;  II - divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações;  III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação;  IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública;  V - desenvolvimento do controle social da administração pública.  Assim, considerando todas as normas editadas posteriormente ao Decreto 1775/2016 e jurisprudência produzida nos últimos 20 anos, sugerimos a atualização do procedimento de demarcação de terras indígenas nos seguintes termos: DECRETO N o , DE 2016. Dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas e dá outrasprovidências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA , no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, e tendo em vista o disposto no art. 231, ambos da Constituição, e no art. 2º, inciso IX da Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973,  DECRETA: Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art. 17, I, da Lei n° 6001, de 19 de dezembro de 1973, e o art. 231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com o disposto neste Decreto. Capítulo I – Do procedimento de demarcação  Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação. Art. 3° O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação. Art. 4º O levantamento fundiário de que trata o parágrafo anterior, será realizado, quando necessário, conjuntamente com o órgão federal ou estadual específico, cujos técnicos serão designados no prazo de vinte dias contados da data do recebimento da solicitação do órgão federal de assistência ao índio. Art. 5° O grupo indígena envolvido, representado segundo suas formas próprias, participará do procedimento em todas as suas fases.  Art. 6° O grupo técnico solicitará, quando for o caso, a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que trata este artigo. Art. 7º No prazo de trinta dias contados da data da publicação do ato que constituir o grupo técnico, os órgãos públicos devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar-lhe informações sobre a área objeto da identificação. Art. 8º Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada. Art. 9º O órgão competente poderá, mediante despacho motivado, abrir período de consulta pública para manifestação de terceiros, antes da decisão do pedido. Art. 10. A abertura da consulta pública será objeto de divulgação pelos meios oficiais e pela internet, a fim de que pessoas físicas ou jurídicas possam examinar os documentos relativos ao processo, fixando-se prazo para oferecimento de alegações escritas. Art. 11. O órgão federal de assistência ao índio deverá motivar a decisão administrativa sobre o relatório circunstanciado, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, incluindo as situações em que:  I - negue, limite ou afete direitos ou interesses; II - deixe de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou haja discrepância de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais; Art. 12. A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato. Art. 13. Aprovado o relatório pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, este fará publicar, no prazo de quinze dias contados da data que o receber, resumo do mesmo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel. Art. 14. Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e Municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior. Art.15. Da decisão administrativa cabe recurso, no prazo de 60 (sessenta) dias. Art. 16. O recurso será dirigido à autoridade que proferiu a decisão, a qual, se não a reconsiderar no prazo de cinco dias, o encaminhará à autoridade superior. Art. 17.Se o recorrente alegar que a decisão administrativa contraria enunciado de súmula vinculante ou de jurisprudência de Ministros do Supremo Tribunal Federal, caberá ao órgão federal de assistência aos índios, se não a reconsiderar, explicitar, antes de encaminhar o recurso à autoridade superior, as razões da aplicabilidade ou inaplicabilidade da súmula ou da jurisprudência, conforme o caso.  Art. 18. Nos sessenta dias subsequentes ao encerramento do prazo de que trata o parágrafo anterior, o órgão federal de assistência ao índio encaminhará o respectivo procedimento ao Ministro de Estado da Justiça e Cidadania, juntamente com pareceres relativos às razões e provas apresentadas. Art. 19. O Ministério da Justiça e Cidadania designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo a ser nomeado como chefe da área especializada do MJC, e contando com a participação de servidores da área de direitos humanos e de promoção da igualdade racial, com a finalidade de avaliar o cumprimento dos requisitos do Artigo 231 da Constituição Federal e a compatibilidade dos limites propostos para a Terra Indígena com outros direitos e garantias fundamentais – de mesma importância na Constituição. Art. 20. O GT Técnico do Ministério da Justiça e Cidadania fornecerá subsídios para a decisão do Ministro da Justiça e Cidadania, a ser composto por representantes do: a) Do Gabinete do Ministro; b) da Secretaria-Executiva; c) da Consultoria Jurídica; d) da Secretaria Especial de Direitos Humanos; e) da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; Art. 21. O GT Técnico avaliará os recursos não acatados na FUNAI, nos termos da Lei de Processo Administrativo, bem como todas as decisões administrativas finais sobre a criação de terras indígenas.  Art. 22. Antes da tomada de decisão, a juízo do Grupo Técnico do Ministério da Justiça e da Cidadania ou do Ministro da Justiça e Cidadania, diante da relevância da questão, poderá ser realizada audiência pública para debates sobre a matéria do processo. Parágrafo único. Os órgãos e entidades administrativas, em matéria relevante, poderão estabelecer outros meios de participação dos administrados, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas. Art. 23. O Grupo Técnico do Ministério da Justiça deverá verificar, para emitir a sua decisão fundamentada quanto ao uso dos meios adequados no relatório circunstanciado: I. Provas da ocupação e do uso históricos das terras e dos recursos por membros da comunidade; II. O desenvolvimento de prática tradicionais de subsistência e de rituais; III. A toponímia da área em linguagem indígena; IV. Estudos e documentos técnicos; V. Provas da reunião de condições necessárias para a caracterização do território reclamado para o desenvolvimento da comunidade; Art. 24. Caso tenha havido perda de área, o Grupo Técnico do Ministério da Justiça verificará se o relatório circunstanciado previu a reparação por terras, territórios e recursos que possuíam tradicionalmente, de acordo com os incisos III e IV do Artigo 27. Art. 25. O Grupo Técnico do Ministério da Justiça deverá verificar, para emitir a sua decisão técnica fundamentada quanto ao atendimento no disposto no § 1º do art. 231: I. A delimitação de terra em extensão e qualidade suficiente para a conservação e o desenvolvimento de seus modos de vida; II. Demonstração de que a terra garante o exercício contínuo das atividades de que obtém o seu sustento, incluindo a sua viabilidade econômica, e das quais dependa a preservação de sua cultura; III. O cumprimento da jurisprudência do STF sobre a demarcação de Terras Indígenas; Art. 26. Em até trinta dias após o recebimento do procedimento realizado pelo Grupo Técnico do MJC, o Ministro de Estado da Justiça decidirá: I - declarar, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação; II - prescrever todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias; ou III - desaprovar a identificação e retornando os autos ao órgão federal de assistência ao índio, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1º do art. 231 da Constituição e demais disposições constitucionais pertinentes. Capítulo II – Do relatório circunstanciado de identificação e delimitação  Art. 27. O relatório circunstanciado deverá ser produzido considerando os requisitos previstos na Constituição Federal, o que inclui:  I. realização de Consulta Livre, Prévia e Informada aos povos indígenas interessados, nos termos da Convenção nº 169 da OIT; II. na delimitação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, prevista no § 1º do Art. 231 da CF, deverão ser avaliadas todas as alternativas para a definição daquelas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais – incluindo áreas de preservação permanente, reserva legal e zonas de amortecimento de unidades de conservação – necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições; III. o direito à reparação, por meios que podem incluir a restituição ou, quando isso não for possível, uma indenização justa, imparcial e eqüitativa, pelas terras, territórios e recursos que possuíam tradicionalmente ou de outra forma ocupavam ou utilizavam, e que tenham sido confiscados, tomados, ocupados, utilizados ou danificados sem seu consentimento livre, prévio e informado;  IV. salvo se de outro modo livremente decidido pelos povos interessados, a indenização se fará sob a forma de terras, territórios e recursos de igual qualidade, extensão e condição jurídica, ou de uma indenização pecuniária ou de qualquer outra reparação adequada. V. no caso de sobreposição com unidades de conservação, deverá ser estudada solução para a compatibilização com a unidade, considerando a sua categoria e seu zoneamento, incluindo os benefícios ambientais da presença indígena e o papel da unidade de conservação para preservação dos recursos ambientais necessários à terra indígena; VI. caso haja completa incompatibilidade entre as duas áreas protegidas, deverão ser estudadas duas alternativas de solução:  a. a utilização de uma das alternativas previstas no inciso II para a delimitação da terra indígena; ou  b. a desafetação de parte da unidade de conservação, com aquisição de área contígua de mesmo valor ecológico, utilizando recursos da compensação ambiental prevista no Art. 36 da Lei 9985/2000 (Sistema Nacional de Unidades de Conservação) para empreendimento de significativo impacto ambiental localizado na mesma bacia hidrográfica. VII. levantamento das práticas tradicionais de caráter coletivo e sua relação com a ocupação atual da área identificando terras destinadas à moradia, espaços de sociabilidade destinados às manifestações culturais, atividades de caráter social, político e econômico, demonstrando as razões pelas quais são importantes para a manutenção da memória e identidade do grupo e de outros aspectos coletivos próprios da comunidade; VIII. descrição das atividades produtivas desenvolvidas pela comunidade com a identificação, localização e dimensão das áreas e edificações utilizadas para este fim, demonstrando a importância para a sustentabilidade econômica;  IX. identificação e censo de eventuais ocupantes não-indígenas, com descrição das áreas por eles ocupadas, com a respectiva extensão, as datas dessas ocupações e a descrição das benfeitorias existentes; X. informações, na hipótese de algum ocupante dispor de documento oriundo de órgão público, sobre a forma e fundamentos relativos à expedição do documento que deverão ser obtidas junto ao órgão expedidor;  XI. levantamento e especificação detalhada de situações em que as áreas pleiteadas estejam sobrepostas a unidades de conservação constituídas, a áreas de segurança nacional, a áreas de faixa de fronteira, terras quilombolas ou situadas em terrenos de marinha, em outras terras públicas arrecadadas pelo INCRA ou Secretaria do Patrimônio da União e em terras dos estados e municípios; XII. a situação de uso e ocupação na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, incluindo a utilização de imagens de satélite, se disponíveis;  Art. 28. O relatório circunstanciado deverá identificar a existência, na área estudada, as seguintes situações relacionadas ao patrimônio cultural brasileiro e às populações mais carentes:  I. a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família,(alterado do Art. 5º da CF); II. a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; (Art. 185, que trata de áreas insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária); III. habitação para o trabalhador rural; (Política Agrícola, Art. 187, CF); IV. partes ocupadas e produtivas de assentamentos de reforma agrária (interesse social, Art. 184, CF); V. edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (Art. 216, patrimônio cultural brasileiro), caso seu uso e fruição pela sociedade sejam incompatíveis com os objetivos das terras indígenas; VI. assentamentos humanos ocupados predominantemente por população de baixa renda em áreas urbanas consolidadas (Código Florestal);  VII. terras quilombolas ou em processo de identificação; § 1°. Para a definição da exclusão destas áreas, além dos direitos e garantias fundamentais destas populações, deverão ser levados em consideração ainda os eventuais prejuízos socioeconômicos e de relacionamento para os próprios povos indígenas em decorrência do afastamento de populações com as quais mantenham laços; § 2°. Dependendo da magnitude dos impactos sociais da remoção destas populações e do patrimônio cultural sejam significativos em relação aos direitos humanos, o relatório circunstanciado deverá prever a aplicação da reparação prevista no inciso III do Art. 27. § 3º. Nos casos acima especificados, o relatório circunstanciado deverá indicar, entre as alternativas de áreas definidas no parágrafo anterior, quais serão utilizadas para garantir mais área para a terra indígena, mantidos os requisitos do Art. 231 da Constituição Federal, em igual qualidade e extensão das ocupadas por outras populações cujos direitos humanos devem ser conciliados; § 4°. Para o atendimento ao caput, poderão ser desapropriadas outras áreas, contíguas ao restante da terra indígena, sem destinação social ou de patrimônio cultural brasileiro; § 5°. Deverão ser consultados as comunidades indígenas interessadas para a definição destas áreas, incluindo o interesse em alguma área específica;  Art. 29. Os trabalhos de identificação e delimitação de terras indígenas realizados anteriormente poderão ser considerados pelo órgão federal de assistência ao índio para efeito de demarcação, desde que compatíveis com os princípios estabelecidos neste Decreto. Art. 30. Verificada a presença de ocupantes não índios na área sob demarcação, o órgão fundiário federal dará prioridade ao respectivo reassentamento, segundo o levantamento efetuado pelo grupo técnico, observada a legislação pertinente.  Art. 31. No Decreto de Demarcação, deverá ficar claro que:  I. o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser relativizado sempre que houver como dispõe o artigo 231 (parágrafo 6º, da Constituição Federal) o relevante interesse público da União na forma de Lei Complementar; II. o usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional e a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando aos índios participação nos resultados da lavra, na forma da lei. III. o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo se for o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira;  IV. O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai; V. A atuação das Forças Armadas da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai; VI. O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação;  VII. O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade imediata do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; VIII. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, que deverão ser ouvidas, levando em conta os usos, as tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da Funai;  IX. O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes; X. Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai; XI. O ingresso, trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; XII. A cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não; XIII. As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico, que restrinja o pleno exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade indígena; XIV. É vedada, nas terras indígenas, qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária extrativa; XV. As terras sob ocupação e posse dos grupos e comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto no artigo 49, XVI, e 231, parágrafo 3º, da Constituição da República, bem como a renda indígena, gozam de plena imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos taxas ou contribuições sobre uns e outros; XVI. É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada; XVII. Os direitos dos índios relacionados as suas terras são imprescritíveis eestas são inalienáveis e indisponíveis. XVIII. É assegurada a efetiva participação dos entes federativos em todas as etapas do processo de demarcação. Art. 32. A demarcação das terras indígenas, obedecido o procedimento administrativo deste Decreto, será homologada mediante decreto.  Art. 33. Em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, o órgão federal de assistência ao índio promoverá o respectivo registro em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda. Art. 34. O órgão federal de assistência ao índio poderá, no exercício do poder de polícia previsto no inciso VII do art. 1° da Lei n° 5.371, de 5 de dezembro de 1967, disciplinar o ingresso e trânsito de terceiros em áreas em que se constate a presença de índios isolados, bem como tomar as providências necessárias à proteção aos índios.  Art. 35. O Ministro de Estado da Justiça expedirá as instruções necessárias à execução do disposto neste Decreto.  Art. 36. Nas demarcações em curso, cujo decreto homologatório não tenha sido objeto de registro em cartório imobiliário ou na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda, os interessados poderão manifestar-se, nos termos do § 8° do art. 2°, no prazo de noventa dias, contados da data da publicação deste Decreto.  Art. 37. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.  Art. 38. Revoga-se o Decreto n° 1175, de 8 de janeiro de 1996. Brasília, .... de .... de 2016 MICHEL TEMER Alexandre de Moraes”

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.