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Laudo comprova morte de preso político em hospital do Exército

Em audiência da Comissão da Verdade do Rio, médico-legista conclui que engenheiro Raul Amaro foi torturado ao menos três vezes na semana em que esteve na unidade, em agosto de 1971

Por Felipe Werneck
Atualização:

Laudo do médico-legista Nelson Massini apresentado nesta segunda-feira em audiência da Comissão da Verdade do Rio comprova que o engenheiro Raul Amaro Nin Ferreira, preso pela Polícia do Exército em agosto de 1971, durante a ditadura militar, foi torturado e morto dentro do Hospital Central do Exército (HCE). Massini, que já atuou em casos emblemáticos como a chacina da Candelária, o massacre do Carandiru e o assassinato de Chico Mendes, concluiu que Raul Amaro foi torturado em pelos menos duas ocasiões durante interrogatórios no HCE. Preso em 1.º de agosto de 1971 em Laranjeiras, na zona sul do Rio, o engenheiro foi levado para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e, no dia seguinte, transferido para o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Ferido, Raul Amaro deu entrada no HCE em 4 de agosto. Oito dias depois, a mãe dele, Mariana Lanari Ferreira, recebeu a ligação de um militar avisando sobre a morte. O médico-legista confrontou o exame cadavérico do engenheiro com o laudo de entrada no HCE, documentos levantados pela família em arquivos públicos. As lesões foram classificadas conforme a cor, de acordo com o espectro de equimoses de Legrand Du Salle. Os exames mostram que há diferenças na quantidade, na localização e nos tipos de lesões descritas, disse Massini. Segundo ele, é possível afirmar que Raul Amaro foi agredido logo após ter sido preso, depois foi torturado entre os dias 6 e 7 de agosto, já no HCE, e novamente no dia 11, quando submetido a interrogatório. A morte do engenheiro foi decorrente das sessões de tortura, aponta o relatório. "Médicos omitiram a real condição de morte do Raul. Cabe um pedido de perdão dos conselhos de medicina à família. Este caso comprova e dá início à investigação de possíveis novos casos no HCE", afirmou Massini. Em dezembro, relatório produzido pela família de Raul Amaro já havia revelado documentos inéditos como um ofício encaminhado ao diretor do HCE em 11 de agosto de 1971 pelo então comandante do I Exército, general Sylvio Frota, que ordenava a entrada de dois agentes do Dops "a fim de interrogarem o preso". Raul Amaro tinha 27 anos. Ele morreu às 15h50 do dia seguinte, de acordo com atestado de óbito apresentado na época, no qual constava que a causa da morte dependia de "resultado de exame laboratorial". No entanto, relatório do DOI produzido na véspera apontava que "não houve tempo para inquiri-lo sobre todo o material encontrado em seu poder", o que indica que ele pode ter morrido durante o interrogatório no HCE. "Não há mais dúvidas de que o laudo foi fraudado. Esses médicos foram coniventes com a tortura. Na pior das guerras ninguém é torturado e morto dentro de um hospital. E isso aconteceu na ditadura brasileira. O caso Raul Amaro é o primeiro que tomamos conhecimento", afirmou a presidente da Comissão da Verdade do Rio, Nadine Borges. Segundo ela, os pedidos de acesso aos prontuários do HCE não foram respondidos pelo Ministério da Defesa. "Caso a gente não obtenha essa resposta, o caminho é atuar junto com o Ministério Público Federal. É inadmissível que em 2014 o Exército não forneça os prontuários de quem foi atendido no HCE durante a ditadura." Nadine também criticou o fato de o general reformado José Antonio Nogueira Belham ter se recusado a prestar depoimento na Comissão Nacional da Verdade. O ofício do DOI com "todo o material apreendido em poder de Raul Amaro, bem como cópia das declarações prestadas pelo referido preso neste destacamento" é assinado pelo então major Belham. O ofício foi encaminhado para o comissário Eduardo Rodrigues, que interrogou Raul Amaro no HCE, "conforme entendimentos havidos". O sobrinho de Raul Amaro, Felipe Nin, que reuniu mais de 300 páginas de documentos oficiais sobre o caso, divulgou nota da família em que pede acompanhamento pelo Conselho Federal de Medicina. "Como uma instituição médica poderia permitir e tolerar que atentados à vida de paciente pudessem ocorrer em suas dependências? A família se sente chocada com a contradição entre o que já é público sobre o caso Raul Amaro e as versões oficiais de que a instituição militar desconhece torturas." De acordo com o relatório organizado pela família, Raul Amaro pediu a um enfermeiro do HCE: "Tire-me deste horror". A versão oficial do Exército, divulgada em 29 de setembro de 1971, afirmava que o engenheiro tentou escapar enquanto policiais recolhiam e examinavam material encontrado em seu apartamento e que ele "reagiu com agressividade violenta" quando um guarda tentou impedir a fuga. Ex-aluno do colégio São Bento e da PUC, Raul começou a trabalhar no Ministério da Indústria e Comércio em 1970 e preparava-se para viajar à Holanda para fazer um curso quando foi preso. Ele iniciou seu envolvimento com política na universidade e, segundo a família, ajudava amigos que participavam do movimento guerrilheiro contra a ditadura. Somente em 1994 a União foi responsabilizada pela prisão, tortura e morte do engenheiro, após longa batalha judicial da família contra o Estado.

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