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Juiz federal propõe mudanças no projeto de lei de lavagem de dinheiro

Douglas Camarinha Gonzales, em entrevista ao 'Estado', alerta que todo ato que oculte proveito econômico decorrente de infração criminal será classificado como lavagem

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Por Fausto Macedo
Atualização:

O juiz federal Douglas Camarinha Gonzales recomenda a exclusão do artigo 1.º do projeto que altera a Lei de Lavagem de Dinheiro. A nova redação prevê como lavagem todo ato que oculte proveito econômico decorrente de infração criminal. "Um investidor que recebe aluguel e não declara ao Fisco tais rendimentos, vindo a reaplicar esse dinheiro na construção comercial, formalmente pode ser acusado de lavagem", adverte Camarinha, da 6.ª Vara Criminal Federal de Lavagem de Capitais e Crimes Financeiros de São Paulo.

 

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O projeto 3443/2008, aprovado pela Câmara, de volta ao Senado, traz importantes modificações na Lei 9613/98, que dispõe sobre sanções para o crime de lavagem de capitais, e divide juristas renomados, delegados federais e constitucionalistas.

Qualquer delito poderá ser classificado crime antecedente para caracterizar lavagem - desde que a ação produza ativos ilícitos. A lei em vigor limita o rol dos crimes antecedentes.

 

Advogados protestam sob alegação de que a lei os obrigará a revelar aos órgãos de controle e fiscalização a origem dos valores que recebem de seus clientes.

 

Policiais reclamam que o endurecimento da nova lei ficou para trás - no Senado, a pena máxima sugerida para acusados por lavagem era de 18 anos, na Câmara a sanção caiu para 10 anos.

 

Ponto controverso é que qualquer delito penal poderá ser classificado como crime antecedente para caracterizar a lavagem de dinheiro - desde que aquela ação delituosa produza ativos ilícitos.

A lei ainda em vigor restringe o rol de crimes antecedentes a um pequeno número.

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O projeto impõe, ainda, multa de até R$ 20 milhões a quem não comunicar informações solicitadas aos órgãos de fiscalização, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

 

Douglas Camarinha Gonzales atua na 6.ª Vara de Lavagem de Capitais e Crimes Financeiros de São Paulo, com acervo de 224 inquéritos e 474 ações penais em andamento, além de 578 procedimentos diversos - busca e apreensão, cautelar de arresto, sequestro, pedido de quebra de sigilo bancário e fiscal.

 

Ele ingressou na magistratura federal em maio de 2001. Trabalhou na Justiça Federal de Londrina, Curitiba, Paranaguá e Guarulhos. Antes de assumir a 6.ª Vara Criminal, atuou no Fórum Cível e no Juizado Especial Federal.

 

Aos 37 anos, possui mestrado em Direito do Estado pela USP e especialização em Direito Criminal pelo convênio Universidade de Coimbra com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

 

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ESTADO: Quais são os pontos importantes do projeto?

DOUGLAS CAMARINHA GONZALES: O projeto de lei 3.443/2088 traz significativas inovações na Lei nº 9.613/98 e apresenta pontos positivos e negativos. Destaco a necessária ampliação do rol de empresas e pessoas físicas obrigadas a prestar contas aos órgãos de fiscalização para a prevenção do delito. Os pontos positivos do projeto são justamente aqueles lançados para a prevenção do delito, mediante a participação empresarial, de entidades civis e da própria sociedade. Busca-se, pois, menos processos e mais soluções eficientes.

ESTADO: Quem terá que se enquadrar nessa conduta?

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CAMARINHA: O projeto ressalta de um lado o setor financeiro e, de outro, setores que atraem investimento como de objetos de luxo, de obras de arte, de imóveis, de feiras, de agenciamento de atletas profissionais e artistas entre outros. Arrola, ainda, as empresas de consultoria, assessoria e auditoria para a compra de imóveis e de aplicações financeiras. Assim, o projeto alcança sim os serviços de advocacia, salvo o setor criminal em razão do postulado constitucional do direito de defesa.

 

ESTADO: Como ficam as companhias com a nova lei?

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CAMARINHA: Há, ainda, aprimoramento expressivo na chamada compliance, termo inglês que sintetiza o setor corporativo da empresa que cumpre as exigências burocráticas legais para prover a correta informação às autoridades de movimentação suspeita. O projeto requer que tais entidades adotem política de controle de informação, cadastro e controle interno para o cumprimento das exigências legais e administrativas.

ESTADO: O que o sr. repudia no texto?

CAMARINHA: O ponto negativo é justamente quanto à nova redação do fato típico. Particularmente, acredito que a redação original da Lei nº 9.613/98 melhor contempla o problema sem dramatizá-lo. Já o projeto radicaliza as infrações criminais de acintosa gravidade, como sequestro, latrocínio, roubo a mão armada, com outros de menor potencial ofensivo, como a contravenção, o jogo do bicho. Generaliza a delito como infração criminal para efeitos de delitos antecedentes, pois abolido pelo projeto. Essa situação certamente afronta o princípio da razoabilidade e da acessoriedade, como destaca o procurador da República Vladimir Aras, em artigo interessante sobre o tema.

ESTADO: O sr. não acha que a ampliação ilimitada do rol de crimes antecedentes alarga demais a área de atuação das varas de lavagem?

CAMARINHA: Certamente, nesse tópico o projeto requer revisão cirúrgica. Caso contrário, haverá uma neurose judicial de que tudo é lavagem de dinheiro.

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ESTADO: Juristas e advogados criminais avaliam que essa extensão vai levar ao fim das varas de lavagem dado o acúmulo de inquéritos e ações sob sua responsabilidade. O sr. teme uma explosão no número de demandas?

CAMARINHA: A preocupação é fundada. Aponto que a redação do tipo penal da Lei nº 9.613/98 não deve ser modificada, salvo para explicitar o que se entende por organização criminosa. Justamente por isso, acredito que o projeto será revisto.

ESTADO: O sr. defende penas mais duras para os crimes de lavagem de dinheiro?

CAMARINHA: Como já apontado pelos advogados e juristas esclarecidos, o agravamento da pena não induz a redução da marginalidade, mas sim o aprimoramento institucional do controle à prática do de tal delito. Gostei, contudo, do artigo 2.º , diante da inovação quanto ao provisionamento de valores a pessoas ou grupo que tenha por fim infundir pânico na população.

 

ESTADO: Delegados da PF criticam a redução da pena máxima. O sr. defende 10 anos ou 18 anos de pena máxima?

CAMARINHA: Não se deve ditar a política criminal com brados dramáticos, mas com reflexão criminológica. Acredito que a mudança legislativa corporificou essa reflexão necessária, mas que ainda pode ser aprimorada.

ESTADO: Advogados se dizem apreensivos com o artigo do projeto que, segundo eles, os obriga a revelar aos órgãos de controle e fiscalização movimentações atípicas de que tenham conhecimento por meio de seus clientes.

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CAMARINHA: É uma questão cultural, cuja mudança só ocorrerá com o tempo e com a educação. Diz-se que uma sociedade progride de dois modos ou pela educação ou pela lei. Veremos.

ESTADO: O que o sr. excluiria do texto do projeto?

CAMARINHA: O artigo 1.º deve ser excluído, em minha opinião. Acredito que a redação da lei vigente é mais sensata, de forma que não merece modificação. Cito um exemplo banal para ilustrar a discussão. De acordo com a redação do projeto, passa a ser lavagem todo ato que oculte proveito econômico decorrente de infração criminal. Assim, um investidor que recebe aluguel e não declara ao Fisco tais rendimentos, vindo a reaplicar esse dinheiro na construção comercial, formalmente pode ser acusado de lavagem de dinheiro. Essa a extensão que o projeto ganha com a redação dada ao artigo 1.º e que a sociedade precisa refletir sobre sua necessidade.

ESTADO: O sistema penal vai no caminho certo?

CAMARINHA: A criminologia mais moderna busca o controle da criminalidade com um novo foco. Outrora, o estudo era focado no criminoso indivíduo, ao passo que atualmente volta-se para o evento criminoso. Logo o novo foco nessa nova ordem criminológica é o crime em si e as situações que lhe dão ensejo, chamadas de oportunidades para o delito ou situações criminológicas. A presunção é a de que delitos ocorrerão se não houver controle, quer o indivíduo tenha ou não predisposição ao delito. Assim, a atenção não deve ser focada diretamente sobre o indivíduo, mas sobretudo nas rotinas de interação, no ambiente social e nas instâncias de controle que são firmadas para impedir o delito.

ESTADO: Qual a sua opinião?

CAMARINHA: Muito debate científico já se travou nesse sentido do qual vale destacar o pensamento do jurista David Garland, professor da Universidade de New York. Ele destaca que essa nova criminologia implica na expansão de uma estrutura de prevenção ao delito em prol da segurança comunitária. Aponta a experiência inglesa de interagir com a sociedade civil organizada, empresas privadas e entidades não governamentais que buscam uma parceria para fomentar a prevenção ao crime e realçar a proteção da comunidade, ao cultivar o seu envolvimento e participação de ideias e práticas de prevenção ao delito, tais como polícia comunitária, painéis de prevenção ao delito, projetos ambientais de prevenção, programa de observação da comunidade. Justamente por isso já se denota uma mudança oficial da política criminal que se volta muito mais para a prevenção ao delito do que para sua cura. Procura-se, por consequência, reduzir as oportunidades para o delito ao implementar-se mais instâncias de controle, modificando-se velhos hábitos.

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ESTADO: Como combater a criminalidade?

CAMARINHA: Pontua, ainda, o professor da Universidade de Nova York que tais instituições criadas por essa nova onda criminológica não representam mero apêndice institucional da Justiça, mas sua nova faceta, ao primar por objetivos e prioridade distintos - a prevenção, a segurança comunitária, a redução da violência e do medo -, ao passo que os objetivos tradicionais da Justiça são a persecução processual e a sanção criminal . Sob esse enfoque pode-se dizer que o novo discurso criminológico brada pelo gerencialismo penal através da aceitação da inevitabilidade da sociedade do risco, dominada pela racionalidade econômica, o que implica em combater a criminalidade com técnicas de gestão.

 

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