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‘Impeachment não é recall’, afirma jurista

Professor de direito constitucional na USP diz que STF deve escapar das 'armadilhas' e desarmar dinamites

Por Luiz Maklouf Carvalho
Atualização:

Duas vezes doutor – primeiro em Ciência Política (USP), depois em Direito (Edimburgo, Escócia) – Conrado Hubner Mendes, de 38 anos, é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Administra, semestralmente, 150 alunos, na disciplina direito constitucional. Autor de um livro de referência sobre o papel das cortes superiores em regimes democráticos – Constitutional Courts and Deliberative Democracy, publicado pela Oxford University Press em 2014 –, tem sido um observador atento e crítico da atuação do Supremo Tribunal Federal.

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No ano passado, Mendes foi professor-visitante na Universidade de Oxford. Nesta entrevista, ele fala sobre o processo de impeachment que tramita no Congresso, a Operação Lava Jato e a atuação do STF no atual cenário jurídico-político, que considera “explosivo”.

No momento em que o governo está vivendo sua maior crise política, o STF está em todas: definição do processo de impeachment, Lula assume ou não assume a Casa Civil, o juiz Sérgio Moro pode ou não pode divulgar telefonemas que envolvam a presidente da República e por aí vai. Em que aspectos isso é bom para a democracia?

O Supremo está em todas há muito tempo, é da natureza do regime constitucional brasileiro e do espaço que o próprio Supremo ocupou. Um Judiciário bom para a democracia é aquele que resiste às maiorias em momentos de taquicardia. Não por capricho ou mania de grandeza, mas porque tem argumentos constitucionais para sustentar posição diversa do grito das ruas ou dos poderosos. É da missão do STF mediar conflitos entre Poderes e entre as mais altas autoridades políticas do País. São dinamites que precisa desarmar com técnica e estilo.

Técnica e estilo?

O Judiciário como um todo está desenhado para ser um ator despartidarizado, que fala em nome do Direito, não de interesses ou facções. Tudo isso soa muito bonito, mas é tarefa difícil de cumprir. Para realizar essa façanha, o tribunal precisa muito mais do que de boas decisões jurídicas. Precisa também ter um comportamento público compatível com a de ator imparcial. Tão importante quanto a qualidade jurídica de suas decisões são seus rituais e modos de agir. É uma função cheia de armadilhas, que não consegue ser bem desempenhada por personalidades com demasiada tentação de poder. Mediar a crescente fratura política e social brasileira, onde todo comportamento é categorizado como vermelho ou amarelo, sempre poderá fracassar. Mas juízes devem atenuar esse risco e ajudar o tribunal a se fazer respeitar.

Como vê a atuação da Operação Lava Jato – Polícia Federal, MPF e juiz Sérgio Moro?

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A Lava Jato é o maior caso judicial anticorrupção de que se tem notícia na história do Brasil, uma oportunidade de se diagnosticar em detalhe as promíscuas relações entre poder político e poder econômico. De diagnosticar, não de resolver. Somente o aperfeiçoamento das instituições que disciplinam a relação entre dinheiro e política poderá chegar mais perto disso. Outras operações no passado recente perderam oportunidades parecidas por precipitação jurídica, e há um risco do mesmo acontecer agora.

Onde o sr. está vendo esse risco?

O risco está escorrendo pelos dedos de (Sérgio) Moro (juiz federal responsável pela Lava Jato na primeira instância). O problema não é sua heterodoxia ou criatividade processual, mas sim a violação de direitos que algumas de suas ferramentas acarreta. A Lava Jato demonstra mais uma vez que a corrupção é multipartidária, é pública e privada, é vermelha e amarela, mas o estilo Moro de conduzir esse caso não demonstra preocupação ou interesse em comunicar essa mensagem.

Que mensagem o sr. acha que ele está comunicando?

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Seu senso de heroísmo está equivocado. O juiz-herói é aquele que tem a coragem da discrição, a obsessão com a imparcialidade. Aquele que não negocia direitos fundamentais mesmo quando estes atrasam a investigação. O desafio é impedir que a Lava Jato naufrague, e que não desperdice mais uma vez a oportunidade histórica.

Como vê o processo de impeachment?

A interrupção do mandato eleitoral do cargo mais poderoso do País sempre gerará algum abalo sísmico na democracia. Contudo, ainda pior que a interrupção em si seria a incerteza sobre se ela ocorreu dentro ou fora do marco da institucionalidade, ou seja, em obediência real ou em “obediência maquiada” a regras constitucionais.

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E como saber se vai haver uma coisa ou outra?

Vai depender de uma interpretação da Constituição. Quanto mais extravagante for essa interpretação, menos terá capacidade de convencer. O drama é que o Brasil que foi às ruas em 13 de março parece predisposto a aceitar qualquer justificativa jurídica para o impeachment, que se tornou um fim em si mesmo. Já o Brasil que foi às ruas no dia 18 de março parece predisposto a desconfiar de qualquer justificativa, e não hesita em chamar isso de golpe.

Isso num quadro de posições polarizadas e radicalizadas...

Nenhum dos lados está disposto a dialogar ou a submeter os respectivos argumentos jurídicos ao teste do contraditório. Claro que há zona cinzenta entre os dois, mas as nuances não conseguem se expressar. É um cenário jurídico-político explosivo. Quando a interpretação jurídica não consegue se diferenciar do conflito político, significa que o estado de direito atingiu o seu limite, o seu precipício. Impeachment nessas condições produzirá uma fratura muito custosa no projeto constitucional brasileiro, apesar das boas razões que podemos ter para desejar outro governo. Impeachment depende de crime de responsabilidade, não é recall. Se pedalada fiscal é crime de responsabilidade, é bom que essa jurisprudência se aplique a todos.

E qual seria a saída?

Gerar algum grau de consenso sobre a correção jurídica do impeachment proposto será impossível, o que é sintomático. Em parte, a controvérsia sobre a validade do impeachment é inevitável, pois interpretar a Constituição não é aplicar um algoritmo, ainda que a retórica de juízes e advogados finja que é. Em parte, é responsabilidade da comunidade jurídica estabilizar interpretações constitucionais, traçar uma linha entre o que pode e o que não pode. O STF está tentando estabelecer essa referência, apesar de sua crônica dificuldade de manifestar uma posição institucional que não seja mera soma de posições individuais.