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'Há uma saída para Brasil rediscutir punição sem derrubar Lei de Anistia', diz relator

Relator do Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos explica que é possível cumprir a sentença da Corte, que condenou o País pelo desaparecimento de pessoas na Guerrilha do Araguaia

Foto do author Beatriz Bulla
Por e Beatriz Bulla
Atualização:

Brasília - Com a conclusão dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, em dezembro de 2014, voltou-se a discutir no Brasil a validade da Lei de Anistia, que perdoou tanto aqueles que cometeram atos considerados crimes políticos durante a ditadura quanto os responsáveis pelo desaparecimento e morte dos que foram perseguidos pelo regime militar. Em visita ao Brasil para participar de um evento no Superior Tribunal Militar, que reuniu a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o ex-presidente da Corte, Felipe Gonzalez concedeu entrevista ao Estado e se mostrou otimista em relação a mudanças na Lei de Anistia brasileira. O relator do Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos explica que é possível cumprir a sentença da Corte Interamericana, que condenou o Brasil pelo desaparecimento de pessoas na Guerrilha do Araguaia, com apenas uma modificação terminológica. Segundo ele, o emprego de "crime político" para determinar os atos de tortura e desaparecimento de pessoas durante a Ditadura está desatualizado. "Há uma saída ai, pela qual não seria necessário revogar a anistia se isso for interpretado dessa maneira", explica, dizendo que uma mudança de classificação possibilitaria que o País se adaptasse à sentença da Corte sem que seja feita uma revisão na Lei da Anistia, referendada por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Confira trechos da entrevista:

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Estado: A revisão da Lei da Anistia é um tema corriqueiro no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Há uma condenação do Brasil, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pela Guerrilha do Araguaia. Mas, o STF aceitou a Lei da Anistia como válida e rejeitou uma revisão. Como compatibilizar a decisão da Suprema Corte brasileira com a tomada pelo Sistema Interamericano?

González: Nos relatórios da Comissão este é um tema central em muitos países da América Latina. De fato, eu diria que a contribuição mais importante que o Sistema Interamericano já deu em sua história foi a questão de tratamento da violação civil mais sistemática. O que a Corte tem dito a respeito da anistia brasileira é o mesmo que tem dito a outros países. É o mesmo, tanto é que assim que outros países como Uruguai, A Anistia, que tem um nome diferente lá, foi referendada por duas vezes e, ainda assim, o sistema interamericano considera, pela convenção interamericana, que há certos direitos básicos não se pode simplesmente tirá-los por decisão da maioria. Não pode uma população, ainda que por decisão de 90%, estabelecer que se volte à escravidão ou que se discrimine as pessoas. O mesmo sobre a questão da anistia, ainda que haja uma maioria das pessoas. Nós já vemos que houve um avanço com a criação de uma Comissão Nacional da Verdade e com um documento por ela produzido. É um primeiro passo muito importante e este também é um tipo de trabalho no qual os países da América Latina foram pioneiros e que depois foram multiplicados pelo mundo. 

 

Estado: E qual a importância da Comissão Nacional da Verdade para esse processo no Brasil?

González: É muito importante, mas não é suficiente. Serão prestados esclarecimentos, mas as comissões da verdade têm uma série de limitações, inclusive no nível de verdade que podem alcançar. Elas não têm à sua disposição os mesmos mecanismos que têm os tribunais. Ou não têm previsto o crime de falso testemunho para os que prestarem depoimentos falsos ante um tribunal. Então, primeiro é quanto ao nível de verdade que se pode alcançar em comparação com um tribunal, ainda que haja uma visão conjunta, o que é uma vantagem da comissão da verdade.

 

Estado: O senhor acredita que o Brasil possa promover mudanças no sentido de aceitar as recomendações da Corte e da Comissão?

González: Estou confiante de que se acabe implementando a sentença da Corte Interamericana. Eu acredito que, no caso da Anistia brasileira, a linguagem que está aplicada permite uma adequação para que se torne compatível com a decisão da Corte Interamericana. É assim que a Comissão vê porque a anistia brasileira se refere a crimes políticos, usando a linguagem dos anos 1970. E, de acordo com o direito internacional atual, as execuções extrajudiciais, as desaparições forçadas, a torturas, ainda que sejam cometidas por motivos políticos, não são crimes políticos. Antigamente havia uma discussão sobre se esses eram ou não crimes políticos. Atualmente é unanime no Sistema europeu e americano que não são crimes políticos, ainda que tenham sido cometidos por motivações políticas. Por isso, o que pode acontecer é que não se aplicasse a anistia aos crimes que não são políticos. Essa é uma questão de como se interpreta a anistia. Há uma saída ai, pela qual não seria necessário revogar a anistia se isso for interpretado dessa maneira.

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Estado: Por que o senhor acha que a partir de agora isso poderia ser repensado no Brasil? Estamos amadurecendo em algum sentido disso?

González: Não, é porque vejo como uma tendência geral nos diversos países da América Latina. Em nenhum deles foi produzida uma reação imediata à decisão do Sistema Interamericano. Com o passar do tempo se vai reproduzindo o que aconteceu em muitos países, as forças armadas vão mudando sua posição em relação aos militares que já são reformados. Isso porque estamos falando em violações que aconteceram entre 30 e 50 anos atrás, às vezes, as novas gerações tomam isso como uma causa importante e são mais ativas a respeito disso. O que acontece também é que se vão se dissipando os temores que essas questões possam colocar em perigo a estabilidade democrática. Isso acontecia na Argentina e no Uruguai, por exemplo, quando a ditadura ainda era mais recente. Não é um processo simples, mas espero que se evolua.

 

Estado: Quais outros temas preocupam a Comissão em relação ao Brasil?

González: A Comissão está observando a situação do Brasil em temas distintos, sobretudo através de audiências e de informação enviada pela sociedade civil e pelo próprio Estado, assim como por meio de algumas visitas que foram feitas. Um dos temas que se acompanha mais de perto são as condições carcerárias. A comissão já emitiu uma série de medidas cautelares a este respeito e, em alguns casos, esses assuntos foram levados à Corte Interamericana pelas condições carcerárias de extrema gravidade, que ferem a integridade pessoal dos detidos. Este é um problema que está presente na grande maioria dos países da América Latina. Mas, no caso do Brasil, é um dos que têm mais medidas cautelares pela gravidade da situação. Tem um outro tema que é relevante e que eu assumo como relator do Brasil, que é o relatório sobre a situação migratória. Este é um assunto que gostaríamos de dar uma atenção mais estreita à situação do Brasil. É necessário que as questões migratórias sejam assumidas pela ótica dos direitos humanos e não com uma ótica de segurança nacional ou de caráter policial. 

 

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Estado: O Brasil teve recentemente um problema com o crescimento migratório, especialmente de refugiados do Haiti. Esse assunto específico chegou à Comissão Interamericana? Há um relatório sobre o tema?

González: Não um relatório em si, mas uma audiência há alguns meses em que se mostrava a situação dos haitianos migrando para o Brasil através do Equador e os problemas que foram surgindo em momentos distintos. Também temos recebido informações constantemente de haitianos entrando pelo Acre e, como há uma questão de asilo político, entendemos que há uma série de problemas que aconteciam, inclusive, de pessoas que enganam os cidadãos haitianos, os chamados coiotes, que enganam as pessoas dizendo que a maneira mais eficaz de entrar no País é através deles e não buscando um visto, uma forma legal. Esse é um problema sério. Eu acredito que o Brasil sofre de questões imigratórias desde outros tempos de outras características: da Bolívia, do Paraguai, do Chile, da época da Ditadura e mais antigamente do Japão, dos países da Europa. Então, claro, é um caso de imigração de caráter diferente, não é que seja um assunto completamente novo. Mas antes me parece que havia menos observação de órgãos internacionais.

 

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Estado: E quanto ao direito de manifestações? Esse assunto ganhou destaque após a onda de protestos de junho de 2013. Quais os focos de atenção do Brasil? Há regiões específicas que vocês entendem que houve certo excesso por conta da militarização das movimentações sociais?

González: Para a Comissão é fundamental o exercício do direito a protestar como parte da liberdade de expressão. E a Comissão acredita que não se pode reprimir esses atos com caráter militar, ou seja, não podem intervir as forças armadas para reprimir os manifestantes. Além disso, não pode haver uso desproporcional da força por parte dos órgãos policiais contra os manifestantes. Por outro lado, estão em seu direito os órgãos estatais de deter pessoas que tenham caráter violento. Mas o que parece que acontece nessas circunstâncias é impedir o direito de que a pessoa se manifeste, e esse é o problema. Eu não tenho neste momento um cadastro por Estado, mas o que vimos em conjunto em todo o País é que as manifestações têm sido mais generalizadas. 

 

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