Exército atacou Farc na fronteira com Colômbia

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Por Agencia Estado
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O último dia de sol intenso no final de outubro, antes da estação das chuvas de 1999, jamais sairá da memória do guerrilheiro colombiano Bernardo Soto. E nem de suas costas, duramente queimadas pelas bombas incendiárias que os jatos A-1AMX da Força Aérea Brasileira (FAB) lançaram contra a Frente 23 das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), abrigadas na selva ao redor de Mitú, na linha de fronteira entre os dois países. A guerrilha preparava a montagem de um santuário no noroeste do Estado do Amazonas, um refúgio fora do alcance legal das tropas regulares da Colômbia. As autoridades brasileiras negam que tenha havido confronto com os rebeldes, mas admitem que um grande exercício conjunto do Exército e da aviação, a Operação Querari, acabou se transformando em um notável recurso de dissuasão contra a guerrilha. Foram envolvidos 40 aviões, 5 mil soldados e modernos equipamentos de apoio. Invasões Quando a manobra foi iniciada, os serviços de inteligência brasileiros já sabiam que os rebeldes preparavam três pequenas invasões simultâneas no Brasil, na Venezuela e no Equador. Um dos integrantes do comando superior das Farc, Joaquin Goméz, liderava a Frente 23 em fins de 99. Ele sustenta que o grupo chegou até o vilarejo de Açaí, na regão conhecida como Cabeça do Cachorro, em terriório brasileiro. A Frente retirou-se quando soube da enorme mobilização da força terrestre e da FAB, mas, garante Goméz, foi atacada pelos caças-bombardeiros e pelos turboélice Tucano da aviação brasileira. "Os Piljan (demônios alados do folclore colombiano) despejaram fogo na selva sobre nossas cabeças, a 100 quilômetros da divisa, no interior das terras nacionais da Colômbia" afirma Joaquin Goméz, considerado sucessor do fundador das Farc, Manuel Marulanda, o Tirofijo. O comandante sustenta que pelo menos seis combatentes foram feridos, dois deles gravemente queimados. Bernardo Soto, na época com 23 anos, era um deles e acabou sendo atendido pelos médicos europeus voluntários de um pequeno hospital mantido por uma missão protestante em São Gabriel da Cachoeira. "Houve perda do tecido em mais de 70% da área das costas. Uma das chagas infeccionou e atingiu o músculo grande dorsal, comprometendo parcialmente os movimentos. O tratamento demorou cerca de 90 dias" explica Goméz. A estratégia de criar abrigos fora do país foi abandonada pelas Farc. A Operação Querari saiu do Estado-Maior do Comando Militar da Amazônia por determinação do general Luiz Gonzaga Lessa, então comandante do CMA. Um oficial ex-integrante da força conta que os serviços militares de informações vinham recebendo dados isolados sobre a a presença de guerrilheiros em vários pontos dos 1,6 mil quilômetros da fronteira com a Colômbia. "A princípio consideramos a possibilidade das incursões utilitárias. Nessa situação, os rebeldes cruzam livremente fronteiras internacionais fugindo das tropas regulares que não podem persegui-los em território estrangeiro." Não era só isso. Os homens e mulheres das Farc passaram a roubar alimentos, remédios e combustíveis da escassa população da área. Em Parada Boa Vista levaram dois barcos a motor e um rádio, isolando os 50 moradores. "A operação estava articulada e tinha desde o início caráter de intimidação. Mas decidimos expandir o uso da força diante dos informes que davam conta das ameaças contra postos militares da fronteira e da tomada de uma pista de pouso da FAB." Os guerrilheiros pretendiam apoderar-se de munições de calibre militar e de armamento variado. Partida Na madrugada do dia 27, o primeiro movimento da grande operação foi feito a cinco mil quilômetros de distância, na Base Aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Uma noite incomum para o fim da primavera nos trópicos, clara e cheia de estrelas, foi riscada pelos quatro jatos A-1AMX que iniciavam o longo deslocamento - com um reabastecimento em vôo sobre Anápolis, em Goiás - até o teatro de operações, em um ponto profundo da alta Amazônia, um novo cenário para os pequenos caças-bombardeiros desenvolvidos em conjunto nos anos 80 pelas forças aéreas do Brasil e da Itália. (Em 99 o prestígio do AMX estava em alta; em maio o avião havia feito seu batismo de fogo em missões de ataque de precisão contra os sérvios na guerra do Kosovo.) Quase ao mesmo tempo decolaram das bases de Porto Velho e Boa Vista esquadrões inteiros do AT-27 Tucano, turboélices de treinamento convertidos em eficientes aviões de ataque leve ao solo. De várias partes do País, como Taubaté, em São Paulo, e Canoas, no Rio Grande do Sul, partiram helicópteros de combate, aviões cargueiros levando hospitais de campanha, suprimentos e até uma estação completa, incluindo o radar, para controle das missões aéreas. O jornalista Silvio Ferraz estava em São Gabriel da Cachoeira no momento do pouso de um enorme quadrimotor Hércules C-130 cargueiro da FAB que transportava as estruturas metálicas, os vidros escuros e os condicionadores de ar de uma torre de controle. "Em algumas horas o equipamento estava montado e o centro, repleto de computadores, já coordenava o espaço aéreo". Ameaça Essa central trabalhou pesado. A hipótese da crise era a de uma invasão maçica, ou no mínimo da ameaça real de que isso pudesse acontecer em um arco de centenas de quilômetros na Cabeça do Cachorro entre os postos militares de Bittencourt e São Joaquim. Lanchas com metralhadoras pesadas, helicópteros de ataque, milhares de soldados. "Nem um só igarapé escapou da varredura. Nosso pessoal tinha ordens de atirar se houvesse qualquer suspeita da presença de guerrilheiros" conta o ex-oficial do CMA. Foram disparados milhares de projéteis. "Mantemos a política definida pelo governo: tolerância zero em relação à preservação da integridade territorial", revela o militar brasileiro. Uma das formas de deixar isso claro para as Farc talvez tenha sido a ação dos AMX que rugiram a baixa altura sobre a selva amazônica, lançando bombas de fragmentação de 240 quilos e incendiárias de diversos tipos contra pontos pré-fixados. Em um deles estava, há 3 anos, o guerrilheiro Bernardo Soto.

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