‘Eu habitei o território do escândalo’, diz consultor de crises

O mais famoso consultor de crises do País, alvo da Operação Acrônimo, narra em livro os 20 anos de ligação com o poder

Por Luiz Maklouf Carvalho
Atualização:

O consultor de crises Mário Rosa morreu. Ele mesmo contou o passamento ao Estado, como um Brás Cubas revisitado, na tarde da terça-feira, em sua casa de 700 m2 no Lago Sul, área nobre de Brasília. Como o defunto de Machado, o de Rosa também escreveu um livro, Entre a Glória e a Vergonha, onde narra, igualmente com galhofa e melancolia, boa parte dos 20 anos em que atendeu uma centena de clientes famosos, parte deles poderosos e milionários que viviam momentos de grande dificuldade. “Eu habitei o território do escândalo”, definiu Rosa ao Estado na agradável sala de estar com vista para a piscina. “Não houve um, entre os mais importantes, econômicos ou políticos, em que de alguma forma eu não tenha participado”.

Entre políticos para os quais Mário Rosa atuou como interlocutor estão nomes como os ex-presidentes FHC e Lula Foto: Dida Sampaio/Estadão

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A morte deu o primeiro ar da graça quando a Polícia Federal bateu no portão de Rosa ao amanhecer do dia 25 de junho de 2015. Ele atendeu os federais ainda em camiseta e cueca, cambaleante de sono. Viu o mandado de busca e apreensão, e ouviu que o contexto era a chamada Operação Acrônimo – que investiga suposto esquema de corrupção envolvendo o ex-ministro e governador de Minas, Fernando Pimentel (PT), que nega as acusações. Em determinado momento, a consultoria de Rosa contratara a assessoria de Carolina Oliveira, mulher de Pimentel. A PF encontrou notas de pagamento de uma empresa a outra – e era essa conexão que queria checar.

“De repente, eu passei a experimentar na pele a dor e o sofrimento que estava acostumado a assistir em meus clientes”, disse o Mário Rosa que sobreviveu. Depois de escolher uma bermuda entre a dúzia e meia disponível no closet do andar de cima, o consultor desceu, sentou-se em um dos sofás, e assistiu impassível a PF escabichar a casa, nos altos e baixos. Nem advogado chamou – e deu ao delegado, com boa vontade, todas as explicações e documentos solicitados.

O golpe de misericórdia, semanas depois, foi a incursão da PF, com mandados de busca e apreensão, em ilustres empresas clientes do consultor, atrás de documentação que comprovasse pagamentos e serviços prestados, de resto e por sorte disponíveis e comprováveis. “Tudo isso foi um choque violento, que acelerou a reflexão que eu já fazia da vida, e acabou resultando no livro”, disse o ex-jornalista de 52 anos.

Entre a Glória e a Vergonha – Memórias de um Consultor de Crises tem perto de 300 páginas. Está na iminência de ser publicado no portal UOL, capítulo a capítulo, como nos folhetins em que o Brás Cubas machadiano veio à luz. Estão lá, para citar alguns casos em que Rosa atuou, a peso de ouro: Lava Jato, Ambev, Casino versus Pão de Açúcar, operação Castelo de Areia, CPIs da CBF/Nike. Dos personagens a quem serviu desfilam, entre dezenas de outros: Ricardo Teixeira/CBF, Léo Pinheiro/OAS, Carlos Pires Oliveira Dias/Camargo Correa, Carlos Jereissati/Iguatemi. Entre os políticos dos quais foi interlocutor estão os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-ministro José Dirceu, o senador Renan Calheiros. Entre os muito famosos, o escritor Paulo Coelho.

“O presidente Fernando Henrique era uma águia nos detalhes. Tinha uma rede complexa de cruzamentos de informação de todos os lados. Ainda moleque, eu fazia parte colateral dela. Quando presidente, me recebia (em geral nos domingos à noite) no Palácio da Alvorada, residência oficial. Preocupado com as grandes questões nacionais, de vez em quando parava a agenda e ouvia a rádio de fofocas que existia dentro de mim. Peças difusas do quebra-cabeça de Brasília que, junto com milhares de outras, ele tinha prazer e dedicação em montar.” - trecho do livro 'Entre a Glória e a Vergonha - Memórias de um Consultor de crises'

Uma regra de ouro, entre os consultores de crise, é o silêncio. O sr. está publicando um livro em que conta boa parte dos 20 anos em que atuou como um. Por que está quebrando o paradigma?

Porque eu tive a quebra da minha confidencialidade exposta nos autos, no contexto da Operação Acrônimo, quando quinze empresas para as quais eu trabalhei sofreram mandato de busca e apreensão. Já que os outros estavam falando de mim, eu também achei que era uma oportunidade de eu mesmo fazer isso.

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Até onde o sr. foi?

Não faço um strip-tease dos atendimentos, mas mostro um pequeno decote do que acontece entre o fato e o fato publicado. Eu vivi nesse território durante esses vinte anos. Falo dos erros, das falhas, das fraquezas – e não sobre aquela perfeição que está nos manuais.

Que tipo de pessoas o sr. atendeu, principalmente?

Pessoas que estavam vivendo situações de destruição das suas vidas ou de suas empresas.

E um belo dia, quando a Polícia Federal bateu na sua porta, o sr. também passou por momentos semelhantes...

Eu vivi na pele um questionamento sobre o que eu era, o que fazia ou não fazia, se era um lobista, se fazia tráfico de influência, se era um operador de recursos públicos. Decidi explicar o que eu fazia, para explicar o que eu não fazia.

Como assim?

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Eu andei ao lado de empresas poderosas, pessoas polêmicas, inimigos públicos número um. Os agentes de corrupção, os lobistas, os que fazem tráfico de influência também andam com pessoas com esse perfil. Mas eu as vivi num momento entre a glória e a vergonha – justamente o tema do livro. Eu as conheci como um motorista do Samu. Levava corpos estraçalhados para o pronto-socorro. A grande diferença entre eu e eles é que eu posso escrever publicamente sobre o que eu fiz.

Quando a Polícia Federal bateu na sua casa o sr. também precisou de um Samu.

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Isso deflagrou em mim uma série de reflexões humanas – e não só profissionais.  Eu sou um cara de meia idade, tenho 52 anos, já vinha num processo de revisão da vida. Ter podido viver por dentro a dor que tantas vezes eu presenciei muito de perto, me deu uma visão diferente. Porque eu senti medo, fraqueza, fracasso, vergonha...

Vergonha de quê, mais precisamente?

Eu habitei um território social, que é o território do escândalo. De um lado, tem um vizinho que é a gloria, de outro, um que é a vergonha. Eu fiquei exatamente na divisa desse território – quando alguém que vinha da glória estava se mudando para a casa da vergonha. Foi nessa faixa estreita que eu convivi com personalidades muito conhecidas, sobretudo conhecidas no pior momento da vida delas. De certa forma, em também vivi um pouquinho disso, mesmo que numa escala muito menor. Isso tornava o meu olhar estatisticamente muito raro. É esse olhar que eu tento compartilhar um pouco, fazendo muitas autocríticas, sobretudo à inflexibilidade que muitas vezes a gente tem.

O sr. atendeu, por baixo, uma centena de pessoas famosas. Entre elas, algumas envolvidas na Operação Lava Jato...

Eu trabalhei para várias dessas empresas que foram acusadas na operação Lava Jato, empreiteiras principalmente.  De alguma forma, como conto no livro, eu estive em todos os principais escândalos empresariais e muitos dos escândalos políticos que aconteceram nos últimos anos, testemunhando, participando de decisões, ou trabalhando profissionalmente. Fazia parte do meu trabalho fazer um exercício  de medicina forense, que era poder olhar cadáveres ilustres e poder dissecá-los para mim. Nessas horas eu não cobrava, era eu que estava ganhando.

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Para ficar na Lava Jato, um dos seus clientes, em algumas ocasiões, foi o empresário Leo Pinheiro, da OAS, hoje em prisão domiciliar. O que o sr. conta no livro sobre ele?

O Leo não estava muito preocupado com a matéria do dia seguinte. Ele queria entender, muito, para onde o noticiário estava indo, que tipo de ênfase estava sendo dada pra esse ou aquele assunto. Eu falava muito menos do Leo para a imprensa e muito mais da imprensa para o Leo.

Outro personagem da Lava Jato – que continua preso – é o ex-ministro José Dirceu, também presente no seu livro.

Eu acompanhei muito a vida do Zé Dirceu. Quando o conheci, como jornalista, ele era da Lava Jato do tempo dele, que se chamava impeachment [do presidente Fernando Collor]. Era um dos porta-vozes da limpeza e da moralidade nos anos 90. É curioso como em um quarto de século a história coloca os seus personagens em papéis às vezes antagônicos. Nunca tive nenhuma relação financeira ou profissional com o Zé, mas eu descrevo algumas interações que nós tivemos ao longo do tempo. É um personagem trágico.

O sr. também conviveu, pontualmente, com alguns presidentes da República, como o Fernando Henrique, por exemplo. Ele está no livro?

Está. Como o maior assessor de imprensa que eu já conheci.

Em que sentido?

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Ele também exercia esse papel como presidente da República. Ia nos detalhes, queria saber tudo o que aconteceu, em todos os lugares. Eu fui, durante algum tempo, um dos seus, digamos assim, fornecedores de intrigas brasilienses. Ele tinha em funcionamento a maior rede simultânea de informações que eu jamais vi, e processava tudo. Se tivesse se dedicado a ser só assessor de imprensa, teria sido o melhor do país - independentemente das suas qualidades como sociólogo, estadista, homem que fez a estabilização da economia.

No livro, o sr. conta algumas histórias a respeito?

Conto. Pequenas histórias, de boas intrigas que ele fez. Más intrigas, se houve, eu não participei.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também está no livro.

Eu interagi com o presidente Lula em algumas situações - uma vez com o João Santana, várias vezes, como assessor da CBF, na campanha do Brasil para virar sede da Copa do Mundo.

Dá para comparar o presidente Lula com o Fernando Henrique?

São estilos completamente diferentes. O presidente Lula não é o melhor assessor de imprensa que eu conheci. É o melhor porta-voz que a presidência teve. Não era de investir na construção da relação pessoal com jornalistas. O Fernando Henrique gastava muito tempo com isso. Tanto tempo, que gastava até mesmo comigo.

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O sr. chegou a pedir favores diretamente para o presidente Fernando Henrique, em algum caso que estava na sua mão?

Ele me ajudou em algumas interlocuções com veículos da mídia. E eu fiz algumas aproximações dele com jornalistas. O presidente Fernando Henrique via como uma variável política muito importante a operação do bastidor da imprensa. O Lula não dava essa importância a isso. Achava que o mais importante era o contato dele direto com a sociedade.

O que o sr. conta, no livro, sobre os clientes poderosos que viveram grandes dramas?

O que eu relato é como esses animais feridos tentaram curar as suas chagas em momentos de muita dor e de muita dificuldade. Eu conto ações reais, desesperos reais, soluções inusitadas...

Um dos personagens, por óbvio, é o senador Renan Calheiros, que inclusive é muito seu amigo, como já público... Como é que ele aparece no seu livro?

Tem um capítulo só com ele. O título é “Na jaula”.

Meu Deus!

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Eu o conheci quando era um jornalista do baixo clero, e ele um desconhecido político do baixo clero. Para minha surpresa, ao longo de quase trinta anos ele se transformou em senador, ministro da Justiça, presidente do Congresso. Se tornou, enfim, o símbolo da política, com tudo o que isso tem de bom e de ruim.

E como é que ele era, nas diversas situações?

Eu conheci centenas de Renan ao longo desse tempo. E convivi, por conta disso, com vários momentos da fera ferida, na jaula, sozinha. Conto alguns momentos de fragilidade, bastidores da política, e um pouco da  personalidade dele. Eu acho que ele foi, como eu descrevo, um cadáver de almanaque, uma pessoa que me ajudou muito a treinar. Eu nunca tive nenhuma relação econômica ou financeira com ele, o que me deu muita liberdade, além da possibilidade de treinamento. Não tem nenhuma acusação feita a um político que o Renan já não tenha sofrido.

Foi uma espécie de pós-graduação...

Um MBA em escândalos. Eu vi todos os tipos de escândalo acontecerem ao redor dele ao longo desses anos. Posso dizer que eu o vi destruído, humano, frágil.

Um outro personagem para quem o sr. trabalhou durante uma década foi Ricardo Teixeira, por muito tempo o todo-poderoso presidente da CBF.

Eu dedico três capítulos a Ricardo Teixeira.

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Meu Deus!

Aprendi muito com ele. Pude participar de um mundo fechado, o mundo dos cartolas. Tive o privilégio de poder espiar isso durante onze anos.  Conto um pouco do que eu vi. Eu fui com ele a todos os continentes, participei da conquista dopentacampeonato em 2002, vivi duas CPIs, participei da vinda da Copa para o Brasil, viajei com a seleção brasileira para o Haiti...

A maior batalha empresarial dos tempos recentes, em que o sr. atuou, foi entre os grupos Casino e Pão de Açúcar. Convidado pelos dois lados, o sr. optou pelo Casino. Como é que esse capítulo entrou no livro?

Até hoje eu nunca vi uma batalha de comunicação que tenha sido maior do que essa. Eu me vi no meio dela durante três anos e meio. Conto os impasses, as dificuldades, os mecanismos, como é que funcionava.

O sr. foi jornalista durante alguns anos – da revista Veja, do Jornal do Brasil, da TV Globo -, ganhou dois prêmios Esso. De repente optou pela assessoria de imprensa, depois se especializou em consultoria de crise, e, como conta, acabou ganhando dinheiro como se tivesse trabalhado 600 anos na profissão de jornalista. Como foi essa transição?

Eu saí do jornalismo porque o jornalismo saiu de mim. Fui perdendo o gosto em criar problemas para a vida alheia, ou a ideia de que o interesse público, esse ser vago, era o meu patrão. Eu perdi a raiva, eu perdi essa vontade de matar, no bom sentido, que é essencial no jornalismo investigativo que eu fazia. 

O sr. começou como assessor de imprensa de encrencados em CPIs – Ricardo Teixeira, por exemplo - e ao longo dos anos foi se transformando, como consultor de crises, numa máquina de ganhar dinheiro.

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Isso demorou muito anos para acontecer. Foi um processo de crescimento profissional, como qualquer carreira. Eu oferecia uma pessoa com experiência, que atendia pessoalmente e exclusivamente. Isso limitava a capacidade de atendimentos que podia fazer. Tinha, no máximo, sete patrões por ano. Se a pessoa estava extremamente bem, vivendo um momento de glória, ela jamais iria me procurar. Eu só atendi pessoas que viveram problemas gigantescos, que estavam em ruínas, contra a maré da opinião pública. De algumas eu cobrava bons honorários. Da maioria, não cobrava nada. Via como um aprendizado.

Como é que são essas pessoas muito poderosas em momentos de grande dificuldade, pela sua experiência profissional?

Elas estão frágeis, temem e sofrem. Nesses momentos precisam ter alguém de confiança.

O que é o sr. conta no livro sobre a Operação Acrônimo e a relação com a Carolina Oliveira, hoje primeira dama de Minas Gerais.

Tecnicamente falando: eu contratei uma jornalista que tinha uma empresa de assessoria  de imprensa, nos anos que eu estava bombando. Os recursos que eu paguei a ela, por ter atendido dois dos meus trinta clientes, eram 5% do meu faturamento naquele quinquênio. Tudo com notas fiscais e serviços comprovadamente prestados. No meio da caminho essa pessoa que eu contratei se torna namorada de um ministro de Estado, no caso o Fernando Pimentel, que depois se torna o improvavelmente eleito governador de Minas, numa eleição que estava  condenado a perder, e ela improvavelmente se torna primeira-dama do Estado de Minas. Quando esse caso eclode [a Operação Acrônimo] - é como se eu tivesse contratado a primeira dama de Minas. Ou tivesse uma relação com o governador de Minas.

Como é que a situação evoluiu?

O tempo ajuda a esclarecer essas coisas. Graças a deus nós temos uma farta produção documental da relação profissional com ela, seja de mensagens trocadas, de contabilidade, de todas as formalidades. Mas eu concordo que num primeiro momento, quando há uma investigação, todos tem que buscar todos os caminhos para ver o que tem de errado. Eu acabei tomando uma bala perdida no meio do caminho - mas isso, a par do choque, e do sofrimento, me trouxe um ganho muito grande, pessoal e profissional. Um deles é compartilhar a experiência e a aventura desses vinte anos no ambiente etéreo do poder econômico, político, e midiático. Foi esse território cheio de perigos que eu habitei como profissional adulto. Eu não vou mais habitá-lo, porque não tenho a mesma energia.

O Mario Rosa consultor de crises morreu?

Aquele consultor de crises que está no livro,  percorrendo todos os dias um campo minado e entrando no próximo, esse morreu.

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