'Estatal não pode servir a um partido', diz jornalista

Especialista condena uso de meios de comunicação do Estado para promover imagem de governos por ser ato 'inconstitucional'

Por Daniel Bramatti
Atualização:

Presidente da Radiobrás no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o jornalista Eugênio Bucci qualificou como "o pior erro de comunicação da história do governo" o vazamento do documento da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, ocorrido na semana passada. Bucci não critica apenas o vazamento em si, ou seja, o fato de uma avaliação interna do governo ter sido exposta no portal estadão.com.br e, a seguir, em outros meios de comunicação. Para alguém que marcou sua gestão na empresa estatal de comunicação pelo combate ao chamado jornalismo chapa-branca, marcado pelo oficialismo, foi uma enorme "decepção" ver a Agência Brasil citada no documento como integrante de uma rede de promoção do governo, no mesmo nível, por exemplo, do Facebook da presidente.

Jornalista Eugênio Bucci Foto: Marcio Fernandes/Estadão

Bucci critica o uso da rede estatal de comunicação para a promoção do governo - mas faz a ressalva de que essa prática não é exclusiva do PT, e sim generalizada entre governantes de todos os partidos. Em seu recém-lançado livro O Estado de Narciso - A comunicação pública a serviço da vaidade particular, ele também defende que o governo deve ser proibido de fazer propaganda. "O Estado não deve se comunicar com a sociedade por meio de compra de espaço publicitário em veículos privados."O que o documento sobre as estratégias de comunicação do governo revela? Trata-se de um texto muito caricato. De início, pensei que fosse um trote, que havia sido escrito por algum redator do Zorra Total (programa de humor da TV Globo). Não sabemos quem fez o documento, mas os sinais indicam que a área de comunicação do Palácio do Planalto não consegue diferenciar o governo do partido. É preciso compreender que são figuras diferentes, esferas diferentes, sujeitos diferentes. Se não conseguirmos separar um do outro, teremos um recuo civilizatório.O PT tem dificuldade de fazer essa separação? Esse tipo de mentalidade, com absoluta segurança, está presente em vários outros partidos e governos. É importante que se diga que isso não é exclusividade do PT. Para um número grande de pessoas que operam comunicação de governo, a propaganda é a disputa de uma guerra. Não é por acaso que usam figuras de linguagem bélicas, como "guerrilha", "soldados", "munição". Essa linguagem nos permite depreender que eles enxergam a sociedade como um campo de batalha, e não como um conjunto de cidadãos. Não há diálogo. O tom é de ocupação e de dominação. Até no Império Romano essa mentalidade seria atrasada. Quem seriam os participantes dessa guerra? Ao longo de todo o documento, a gente depreende a existência do "nós" e do "eles". O "nós" aglutina partido, militantes, ministros, Agência Brasil, Empresa Brasil de Comunicação. O "eles" são os que fazem panelaço, os que fazem manifestação contra o governo. Quando alguém sucumbe a essa lógica do nós contra eles, passa a indiferenciar partido e governo. O que vem depois disso é um descalabro.O documento expõe uma visão de governo ou uma opinião pessoal?O governo não repudiou até agora esse documento. Esse silêncio pode ser lido como um aval. Se não o nega, o governo assina o documento. Deveriam dizer que um texto desses é inaceitável dentro de uma repartição pública.O texto sugere que a Agência Brasil deve ser colocada a serviço da defesa do governo. É esse o papel dela? A Agência Brasil faz parte de uma empresa estatal, a Empresa Brasileira de Comunicação. Uma estatal não pode ser partidária. Quando se organiza a comunicação estatal, o princípio básico é que ela não pode estar a serviço de um partido. A definição do que é estatal está na Constituição, deve primar pelo princípio da impessoalidade. Não sei qual é o entendimento de estatal que está na cabeça dessa gente, mas parece que é outro.O texto fala sobre o uso de "robôs" nas redes sociais pelas campanhas do PT e do PSDB.Nas campanhas, todo mundo usa robôs. Há algoritmos tão sofisticados que até fecham operações no mercado de capitais. Não considero especialmente chocante o uso de robôs. O que choca é o contexto.Também há menção ao uso de propaganda oficial em São Paulo para melhorar a popularidade do prefeito Haddad e, por tabela, da presidente Dilma. O uso de publicidade para promover o governante é uma prática patrimonialista. Não deve existir propaganda oficial para melhorar imagem. Se alguém diz que o faz, está indo contra o que a Constituição preconiza. Está propondo o uso de recursos do Estado para fazer luta partidária. Quem faz esse tipo de proposta seguramente não entendeu o espírito da coisa pública.A Constituição proíbe a propaganda que promova governantes, mas, em seu livro, o senhor mostra que quase todos se utilizam de brechas para ignorar essa regra. Como evitar que isso ocorra?Essa iniciativa precisa partir dos cidadãos. É preciso proibir que o Estado seja anunciante, a não ser em situações excepcionalíssimas. Hoje em dia, todas forças políticas, no governo ou oposição, são unânimes ao tratar como normal o uso da estrutura de comunicação estatal para promover o governo ou o governante. Da mesma forma, há muitos jornais pequenos e médios, entre outros meios de comunicação, que dependem de verbas oficiais e que não estão interessados em mudar essa realidade. Não veem esse sistema como algo que corrompe a democracia.

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