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Em Teodoro Sampaio (SP), procura-se terra até 'dentro do rio'

Registro de propriedades na cidade, localizada em área de conflito agrário, supera em 42% a área real

Foto do author José Maria Tomazela
Por José Maria Tomazela
Atualização:

TEODORO SAMPAIO - O agricultor Reinaldo Nunes, de 35 anos, ainda tenta entender o que aconteceu com mais da metade do lote que recebeu da reforma agrária no Assentamento Dona Carmen, em Teodoro Sampaio, a 660 km de São Paulo. O Sítio Quatro Irmãs ocupa uma faixa entre a Rodovia SP-613 e o Rio Paranapanema e, no papel, tem 7,30 hectares. Ao medir a área, Nunes encontrou apenas 2,60 hectares. “Só se o resto estiver dentro do rio”, ironiza.

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Teodoro Sampaio é um dos municípios paulistas com mais terra cadastrada do que a área disponível de fato. O índice das áreas registradas no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é 42% maior do que a área real existente.

O município, no Pontal do Paranapanema, região de históricos conflitos fundiários, foi o berço paulista do Movimento dos Sem Terra (MST).

Grandes propriedades rurais são alvos de ações movidas pelo Estado por terem sido consideradas terras griladas, obtidas com base em documentos adulterados. Por terem a titularidade contestada, também viraram alvos dos sem-terra.

Muitas fazendas já foram recuperadas judicialmente pelo poder público ou por meio de acordos e destinadas a assentamentos rurais. É o caso da São Pedro, antiga fazenda de gado invadida seguidamente pelo MST até ser transformada no Assentamento Dona Carmen.

“Como tinha mais acampado do que terra, o Incra e a liderança do movimento resolveram reduzir o tamanho, que era de 12 hectares, para oito e meio, mas nem isso deu. Muito lote ficou com pouca terra”, conta a vice-presidente da Associação dos Agricultores do Assentamento, Aparecida de Jesus Pereira José, de 56 anos. Considerados individualmente, os lotes e a área de reserva legal somam 1.435 hectares, sem contar as estradas internas. Mas toda a fazenda transformada em assentamento tinha apenas 1.043 hectares. Aparecida desconfia que seu lote não mede nem os oito hectares e meio. “Formei 2,5 hectares com café sombreado e o que sobrou para pasto foi bem pouco.”

‘Terra de menos’. A queixa quanto ao tamanho dos lotes é comum nos 22 assentamentos da reforma agrária em Teodoro Sampaio, com 1,8 mil famílias de pequenos produtores. O assentado Reinaldo Nunes conta que o vizinho também encontrou “terra de menos”, e, por isso, eles decidiram somar as duas áreas e criar gado em sociedade. Como o pasto ocupa todo o lote, o assentado não consegue fazer lavoura, a não ser uma pequena horta. No que sobra, cria galinhas e meia dúzia de porcos. A renda é insuficiente para manter a família - a mulher Valquíria e quatro filhas, a mais velha com 16 anos, a caçula com um: as quatro irmãs do nome do sítio - por isso Nunes trabalha fora, como tratorista.

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Quem está na terra doada pelo governo conforma-se com o tamanho menor ao ver as famílias que continuam sob a lona, acampadas em beira de rodovias, como a sem-terra Terezinha dos Santos da Silva, de 51 anos.

Enquanto espera a Justiça decidir se a Fazenda São Domingos está em terra pública, ela cultiva uma pequena horta com pimenta e cebolinhas num canteiro com pouco mais de dois metros. “Esse é o meu latifúndio”, diz, enquanto rega as plantas espremidas entre o mar de soja da fazenda e o asfalto da rodovia. No barraco de lona em que passou a morar há quatro anos, ela sonha com o dia em que terá mais terra para plantar. “Sou de aproveitar cada centímetro de chão, imagine o que vou fazer quando tiver um lote inteiro”, diz.

O acampamento Dorcelina Fulador tem 180 famílias cadastradas, de olho nas terras da São Domingos. O coordenador Oscar do Nascimento, de 32 anos, diz que as famílias vivem sob ameaça de seguranças. Caso a fazenda seja destinada a assentamento, a terra não chegará para todos.

“Considerando o lote padrão de seis hectares, dará para assentar umas cem famílias”, contabiliza. A menos que, novamente, a partilha reduza o tamanho da terra real. Os proprietários da São Domingos defendem-se na Justiça das sucessivas invasões pelos sem-terra - foram 18 desde a década de 90. Numa delas, houve reação de seguranças, ou “jagunços” na versão das vítimas, e sete sem-terra foram baleados. Na última, em abril do ano passado, a Justiça autorizou o uso de força policial para retirar os invasores, que permanecem acampados na beira da estrada.

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Marcas dos conflitos pela terra espalham-se pela região. A guarita de aço que protege a Fazenda Santa Rita, na divisa entre Teodoro Sampaio e Mirante do Paranapanema, tem a viseira de vidro, teoricamente à prova de balas, estourada a tiros. De 1995 a meados da década passada, quando a Justiça considerou que os proprietários eram os legítimos donos, a fazenda foi invadida pelo menos quatro vezes. Em fevereiro de 1997, seguranças armados tentaram impedir nova invasão e policiais militares dispararam rajadas de metralhadora para o alto. A tensão levou a família Negrão, dona das terras, a arrendar mais da metade da área para uma usina de cana - a outra parte continua com gado de corte. A informação de que o Incra pode rever os cadastros das terras inquieta o administrador Adriano Pereira da Silva. “Está tudo calmo, agora, vão mexer com isso de novo?”, indagou.

Fazenda fantasma. O advogado Fernando Neves Baptista, que pesquisa a questão fundiária e atua em defesa de vários fazendeiros na região, estranha o sobrecadastramento detectado em Teodoro Sampaio. Segundo ele, houve um caso de uma fazenda ‘fantasma’ - as terras que o suposto dono tentava registrar não existiam de fato -, mas numa cidade vizinha.

“Não conheço ninguém que tenha título e não esteja ocupando a terra. No caso das ações, o que o Estado alega é que seriam terras devolutas, mas elas existem e são reais.”

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De acordo com o advogado, mesmo áreas extensas em Teodoro Sampaio que eram tidas como devolutas já foram julgadas como particulares.

Para o presidente da entidade de fazendeiros União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Antonio Nabhan Garcia, as ações do governo transformaram a região numa “colcha de retalhos” e trouxeram insegurança jurídica. “Não é à toa que somos a segunda região mais pobre do Estado. Quantos investimentos já perdemos porque empresários tomam outro rumo quando conhecem o quadro da região...”

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Para a líder sem-terra Diolinda Alves de Souza, 42, a situação fundiária do Pontal está longe de ser resolvida. “É histórica a concentração de terras aqui e a grilagem também. O fato novo é que os latifundiários se aliaram a grandes empresas do agronegócio e alugam as terras públicas para o plantio da soja e milho e a exploração da cana.”

Pelo menos 10 das 18 grandes fazendas do município transformaram os pastos em canaviais, segundo ela. “Ficou difícil para os movimentos sociais, pois a principal forma de denunciar o latifúndio e cobrar a reforma agrária é com a ocupação. Como o trabalhador se sente ocupando uma área de cana ou de soja?”

Segundo ela, o MST e outros movimentos estão se unindo a sindicatos para repensar as formas de ação. Em alguns acampamentos, as bandeiras desses movimentos já se misturam nos mastros.

Histórico. Teodoro Sampaio era o maior município do Estado, com 2.879,8 km², quando se emancipou, em 1964. Com a emancipação de dois distritos, ficou com a área atual de 1.556,6 km², segundo o IBGE. Sua colonização já foi marcada por disputas: quando o coronel José Pires de Machado foi tomar posse da Fazenda Cuiabá, onde se instalou a cidade, várias pessoas se apresentaram dizendo ter títulos das terras. O nome da cidade, de 21.389 habitantes, homenageia o engenheiro Theodoro Fernandes Sampaio, que trabalhou pelo desenvolvimento da região.

Os latifúndios chamaram a atenção do governo que, na década de 1970, passou a verificar a titularidade das terras, entrando com ações para reclamar as áreas com títulos duvidosos. Essa ação, combinada com o fim da construção de grandes hidrelétricas, que deixaram muitos trabalhadores sem ocupação, acabou atraindo para a região os movimentos de luta pela terra. Atualmente, a região assiste à chegada de empresas sucroalcooleiras.

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