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Áudio inédito mostra que Kissinger foi pressionado a agir contra violações

‘O que eu devo fazer? Mostrar que eu sou um humanista?’, questionou o então o todo-poderoso secretário de Estado americano a seus auxiliares, em outubro de 1974

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Por Marcelo Godoy
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Às 9 horas de 22 de outubro de 1974, o todo-poderoso secretário de Estado americano Henry Kissinger encontrou seu staff, formados por três embaixadores e 16 assessores. As seis páginas com a transcrição inédita da conversa desclassificada pelo governo americano mostram Kissinger e a burocracia do departamento acuados pela pressão encampada pelo deputado democrata Don Fraser (Minnesota) a fim de que a polícia externa dos EUA levasse em consideração o respeito aos direitos humanos.

Presidente Ernesto Geisel com o então secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, em estádio em Brasília, em fevereiro de 1976 Foto: ALENCAR MONTEIRO/ESTADÃO – 21/2/1976

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“O que vocês querem que eu faça? Mostrar que eu sou um humanista?”, pergunta Kissinger aos seus auxiliares. Fraser promovia audiências em um subcomitê da Câmara, o que lhe permitiria convocar para depor o staff de Kissinger, que pretendia marcar um encontro entre os dois. O congressista pressionava o governo republicano de Gerald Ford por suas relações com a Coreia do Sul, Filipinas, Indonésia e Chile. “Todos aliados”, responde Kissinger.

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O Brasil entrou na pressão de Fraser por causa do desaparecimento de três pessoas: a professora de Química da Universidade de São Paulo (USP) Ana Rosa Kucinski; seu marido, Wilson Silva, e o ex-deputado estadual Paulo Stuart Wright. Os dois primeiros militavam na Ação Libertadora Nacional (ALN). Wright era irmão do pastor presbiteriano Jaime Wright e militante da Ação Popular (AP).  Seu caso interessava ainda mais a Fraser e seu grupo por um detalhe: Wright era cidadão americano.

Kissinger disse na reunião que, mesmo que encontrasse Fraser, não conseguiria aplacar o deputado. “Ele vai se dizer chocado pela minha falta de preocupação com os princípios humanitários”. Para o secretário, tudo se resumia a um ponto fundamental: “o quão apropriado é o exercício da política externa americana”. Segundo ele, a pressão sobre os aliados enfraquecia a posição americana no mundo. “E, diante disso, todas as outras coisas são apenas um sentimentalismo sem sentido.”

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Por fim, Kissinger questiona um de seus assessores: “Esse pessoal (Fraser e seu grupo) não quer defender os direitos humanos; eles querem um grande palco. Eles querem a humilhação pública de outros países. Você acha que a posição apropriada para o Departamento de Estado é ser um reformatório para os aliados?”

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Os documentos desclassificados mostram o efeito da ação dos congressistas sobre a administração republicana. Kissinger estava em uma enrascada. Pressionado por um Congresso de maioria democrata (havia dois deputados democratas para cada republicano), ele, ao mesmo tempo, não podia se dissociar de aliados que apoiara, como o general chileno Augusto Pinochet.

Depois da reunião de outubro, Fraser  e outros sete congressistas foram recebidos no dia 17 de dezembro. No grupo estava o senador democrata Alan B. Cranston (Califórnia), autor de uma das leis que limitaram nos anos 1970 a ajuda externa americana a países cujos governos desrespeitassem os direitos humanos.

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O resultado da pressão do grupo pode ser aferido no telegrama enviado pelo Departamento de Estado, em 3 de março de 1975, para o embaixador no Brasil,  John Hugh Crimmins.  Nele, o departamento pedia ao embaixador que alertasse o ministro das relações exteriores do Brasil, Antonio Francisco Azeredo da Silveira, sobre a atmosfera nos EUA, em geral, e no Congresso, em particular, a respeito dos direitos humanos.

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“Você pode citar casos de interesse particular, tais como Paulo Stuart Wright e Ana Rosa Kucinski e seu marido. Fica inteiramente a seu critério decidir quando e a forma de lidar com a questão.” Os três citados no telegrama foram sequestrados e mortos por agentes do Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, e mortos em 1973 (Wright) e 1974 (Ana Rosa e seu marido).

Condor. Em 16 de setembro de 1976, a embaixada americana em Brasília recomendou ao departamento de Estado que adiasse a visita do general Antonio da Silva Campos, chefe do Centro de Informações do Exército (CIE),  aos Estados Unidos. O convite havia sido feito pela Chefia da Inteligência do Estado-Maior do Exército Americano. Para o embaixador Crimmins, a medida era necessário até que fosse possível os EUA saber a extensão da participação brasileira na Operação Condor.

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Montada pelo Chile com a participação de outros serviços secretos sul-americanos, a Operação Condor visava a perseguir opositores dos regimes militares do Cone Sul que vivam em outros países. Naquele ano, espiões chilenos explodiram em Washington o carro que levava o ex-chanceler chileno Orlando Letelier, matando-o em companhia de sua secretária, uma americana.

Por este crime, mais tarde, a Justiça chilena condenaria o chefe da Dina, o serviço secreto chileno, general Juan Manuel Contreras, à prisão. Caso depois recebesse os esclarecimentos necessários, o convite poderia ser feito desde que o general fosse firmemente alertado sobre as preocupações dos EUA com a Operação Condor e sobre a “profundidade da comprometimento americano com os direitos humanos”. O espaço de manobras da diplomacia americana diminuiria ainda mais em 1977, com a chegada ao poder do democrata Jimmy Carter. Então, o governo americano se juntaria ao Congresso na pressão aos seus aliados.

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