PUBLICIDADE

Anchieta precisa de milagre para virar santo

Ordem religiosa busca acontecimento extraordinário para a canonização

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

Dominava as ondas do mar, adiava o início de tempestades, controlava animais ferozes, curava doentes, previa acontecimentos futuros e, dizem testemunhas da época, até "ressuscitou" um morto - na verdade, reanimou um menino enterrado vivo. O missionário mais venerado da história do Brasil, o padre José de Anchieta - que morreu em 1597 com fama de santo milagreiro, depois de passar 44 anos batizando índios - ainda precisa patrocinar um milagre para ser considerado santo oficialmente. A Companhia de Jesus, ordem religiosa à qual pertencia, está fazendo tudo para acelerar o processo, mas não está sendo fácil. Beato desde junho de 1980, quando o papa João Paulo II lhe deu as honras dos altares, com direito a culto restrito enquanto não vem a canonização, Anchieta parou nesse estágio. Ficou atrás de Madre Paulina, a freira de origem italiana que se tornou, em 19 de maio, a primeira santa brasileira, e corre o risco de perder a vez também para Frei Galvão, o frade franciscano de Guaratinguetá (SP) que atrai milhares de devotos à capela do Convento da Luz, na capital, onde está sepultado. "Vamos mostrar ao povo que vale a pena recorrer a José de Anchieta, porque é um amigo confiável que protegia os desvalidos", diz o padre César Augusto dos Santos, vice-postulador da causa de canonização. Nomeado para esse cargo em outubro do ano passado, ele trabalha em tempo integral como uma espécie de advogado de defesa e relações-públicas, promovendo cursos e palestras, visitando escolas e hospitais, planejando concertos e peças de teatro, distribuindo discos e folhetos para tornar ainda mais conhecido o Apóstolo do Brasil. Ex-diretor do Pátio do Colégio, onde os jesuítas fundaram uma escola na aldeia de Piratininga, reorganizou ali um museu com um acervo de 450 peças que recebe centenas de visitantes nos fins de semana. Esforço Todo esse esforço para conseguir um milagre, já que a Igreja exige um fato extraordinário, uma cura de incontestável autenticidade por exemplo, para o papa declarar solenemente que Anchieta era um santo. "Temos uma lista grande de graças alcançadas por intermédio do Beato Anchieta, mas milagre mesmo não apareceu ainda", lamenta o padre César. De vários casos estudados, alguns são relatados por devotos que recorreram também a outros santos, alguns podem ser curas obtidas com remédios e outros não têm como ser atestados, porque o médico do doente beneficiado já morreu. O vice-postulador examinou feitos aparentemente milagrosos no Espírito Santo e no Rio, mas achou que faltava transparência. O relato mais impressionante foi parar no arquivo, porque se referia a um suposto milagre registrado na década de 60. Tratava-se de uma menina, hoje médica, que nasceu com o calcanhar atrofiado e conseguiu corrigir a deficiência encostando o pé numa relíquia de Anchieta. "O milagre precisa ser novo e recente, isto é, tem de ser inédito e ocorrido depois da beatificação", informa o padre César. Em sua opinião, a falta de um milagre convincente só se explica porque não há uma boa divulgação. É por isso que campanha da Associação Pró-Canonização de Anchieta (Canan), que o vice-postulador montou ao lado do Colégio São Luís, em São Paulo, está promovendo a figura do beato em hospitais, escolas, teatro, imprensa, discos, exposições e histórias em quadrinhos. "Visito hospitais, porque é onde há milagre em potencial", diz padre César, com a esperança de um doente pedir a intercessão de Anchieta para se livrar de um mal incurável. Quando há uma cura que a medicina não pode explicar, uma equipe de peritos da Congregação para a Causa dos Santos estuda o caso, em Roma, para concluir se foi milagre. Exposição A Canan tem vários projetos culturais para exaltar a figura de Anchieta. Uma exposição mostrará 2 mil fotos de locais por onde o missionário jesuíta e seu companheiro, o padre Manoel da Nóbrega, passaram. Uma suíte composta por Arrigo Barnabé, que foi apresentada no Pátio do Colégio, em 1997, na comemoração do 4.º Centenário da morte de Anchieta, será gravada em CD, com tiragem de 50 mil cópias. E a cantora Marlui Miranda, autora da melodia de Kewere: Rezar, missa indígena cantada em tupi com texto original de Anchieta, deverá adaptar a composição à esperada cerimônia de canonização. "No teatro, queremos ressaltar a figura do homem e do santo, repetindo no palco o sucesso da peça Anchieta, Nossa História, de Alzira Andrade e Alceste Madella, na qual a atriz Maria Fernanda Cândido fez os papéis de uma índia e de Nossa Senhora, sob direção de Denise del Vecchio", anuncia padre César. Um monge beneditino, irmão Gregório - ou Charles, seu nome de família - está cuidando da iconografia, retratos de Anchieta com traços bizantinos. Uma liberdade de artista, porque o jesuíta era espanhol, filho de pai basco e de mãe de origem judaica. Nasceu em San Cristóbal de la Laguna, em Tenerife, Ilhas Canárias, de onde saiu aos 14 anos para estudar em Coimbra. Foi em Portugal que ingressou na Companhia de Jesus, em 1551, dois anos antes de embarcar para o Brasil numa expedição de missionários. Mãe de Deus Padre César gostaria que Anchieta fosse declarado protetor das vítimas de violência, especialmente dos seqüestrados, porque ele correu muitos riscos no trabalho de evangelização. Como refém dos índios tamoios, que eram aliados dos franceses na luta contra os tupis, amigos dos portugueses, foi ameaçado de morte em Iperoig, atualmente Ubatuba, onde ele e o padre Nóbrega tentavam negociar um armistício. "Aparelha-te, José, farta-te de ver o sol, porque, tal dia, te mataremos e comeremos", gritavam os tamoios, que pretendiam assá-lo nos rituais de antropofagia de suas festas. Anchieta respondeu que isso não ia acontecer, porque a Mãe de Deus não queria que ele morresse antes de escrever a vida dela. O poema De Beata Virgine Matre Dei Maria, de 5.732 versos que comporia em latim, imitando a boa métrica das Metamorfoses do poeta Ovídio, eram o pagamento de uma promessa. Diz a lenda que o missionário escreveu o poema na areia da praia de Iperoig, onde era prisioneiro, mas o mais certo é que o tenha guardado na memória, para transcrever mais tarde. Ele queria se livrar do tacape dos tamoios e, principalmente, do assédio das índias que perturbavam sua castidade. "Estou morto", respondeu Anchieta a uma mulher que lhe perguntou se estava vivo ou morto, quando ele permaneceu em silêncio diante de seus apelos, na escuridão da noite. Os indígenas, relatou o jesuíta em carta a seus superiores, "têm por grande honra, quando vão alguns cristãos a suas casas, dar-lhes suas filhas e irmãs para que fiquem por seus genros e cunhados". E foi o que aconteceu em Iperoig. "Quiseram-nos fazer a mesma honra, oferecendo-nos suas filhas e repetindo-o muitas vezes", revelou o missionário, acrescentando que os índios ficaram espantados ao verem que, por não terem mulheres, os padres eram "tão sofridos e continentes". O poema de louvor à Virgem Maria "nasceu espontâneo das profundezas de uma grande alma, numa das provações mais angustiosas de sua vida", escreveu o também jesuíta Leonel Franca, observando que "o poema de Anchieta admira-se como obra de artista e venera-se como relíquia de santo". Padre César, o vice-postulador da causa, acredita que o papa João Paulo II dispensaria o milagre para a canonização, se lesse os versos, "pois eles são uma prova de santidade heróica". Além de poesias, Anchieta escreveu crônicas, cartas, livros de catequese e peças de teatro, imitando nessa arte os versos e o estilo de Gil Vicente. Foi também autor de uma gramática tupi, língua indígena que utilizava na evangelização. Os padres jesuítas do Colégio São Luís conservam em seus arquivos os originais de duas cartas do beato, uma em latim e outra em espanhol. São peças preciosas para a campanha de divulgação.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.