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A doutrina francesa e a tortura no Brasil

Por Marcelo Godoy - O Estado de S.Paulo
Atualização:

Em 15 de novembro de 1956, dois militantes da Frente de Libertação Nacional (FLN) entraram em um café frequentado por militares franceses em Argel e jogaram uma granada, que explodiu, mas não feriu ninguém. Um suboficial correu atrás de um deles e matou o árabe a punhaladas. Ódio, revolta e vingança foram combustíveis de uma guerra que deixou 500 mil mortos e levou à independência da Argélia, em 1962.

 

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Distante daqui, o conflito travado pelos franceses no Magreb ia influenciar profundamente as Forças Armadas brasileiras por causa de um livro. Escrito em 1958 pelo coronel francês Gabriel Bonnet, Guerras Insurrecionais e Revolucionárias se tornaria uma das obras mais difundidas nas academias e escolas militares do País nos anos 1960 e 1970.

A Biblioteca do Exército o publicou em 1963, com apresentação do general e pensador militar Carlos de Meira Mattos. Às vésperas do golpe, o livro de Bonnet difundia uma nova doutrina, a da guerra revolucionária. Ela virou, nas palavras do general Octavio Pereira da Costa, uma obsessão. "Via-se a guerra revolucionária em todo canto."

 

A definição de Bonnet para esse conflito foi adotada aqui pelo Estado-Maior das Forças Armadas. Era "uma guerra interna, de concepção marxista-leninista, adotada por movimentos revolucionários apoiados ou estimulados pelo exterior". Ela visava "a conquista do poder por meio do controle progressivo, físico e espiritual da população sobre a qual é desencadeada". A política se transformava em guerra, e o inimigo vivia dentro das fronteiras nacionais.

 

A doutrina era resultado do revés francês na Indochina, em 1954. Para enfrentar o desafio da insurgência, o general Marcel Bigeard, o mais condecorado oficial francês do pós-Guerra, pregava ser necessário "espírito de cruzados". Só "um exército revolucionário" - ele escreveu - podia enfrentar a ameaça da revolução.

 

Em 7 de janeiro de 1957 o governo da França deu ao Exército plenos poderes sobre Argel. Seguiu-se a divisão da cidade entre regimentos paraquedistas. O objetivo era neutralizar a FLN. Em um ano, a guerrilha foi esmagada. Os franceses produziram 3 mil desaparecidos.

 

Teórico da guerra revolucionária e veterano da Batalha de Argel, o coronel Roger Trinquier escreveu: "Se é necessário praticar brutalidades inevitáveis, uma disciplina rigorosa deverá sempre estar pronta para proibir aquelas que são inúteis, pois o Exército tem os meios de exigir e de manter uma firme disciplina". A tortura não devia ser um instrumento de sádicos e sim uma arma de guerra. Devia ser julgada só por sua eficácia e não pela moral. Comiseração pelo inimigo era um sentimento a ser evitado. A brutalidade não era mais um excesso. Era o resultado de uma doutrina.

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O pensamento francês apareceu no Brasil em um momento de perplexidade entre os militares. Depois da 2.ª Guerra Mundial, o Exército procurava definir qual seria a doutrina a ser empregada em um conflito próximo. Pensava-se que a guerra convencional estava superada. Surgiu então entre os americanos a doutrina da guerra nuclear, que incluía até o uso tático de armas atômicas.

Para os brasileiros, a guerra nuclear era delirante. Foi nesse vazio que surgiu a doutrina da guerra revolucionária. Ela foi trazida ao País pelos oficiais que cursaram a Escola Superior de Guerra (ESG) em Paris. Não foram apenas militares que se interessaram pela doutrina. Políticos, como o deputado federal Bilac Pinto (UDN), também difundiram seus conceitos.

 

Usada nos órgãos de segurança, essa teoria da guerra não foi adotada em sua plenitude no Brasil como na vizinha Argentina, em 1976. Aqui o pensamento militar clássico, que subordina o poder militar ao civil, ajudou a limitar a obsessão que enxergava subversão "em toda propaganda contra o regime".

 

Contra a revolução, Bonnet pregava reformas. Trinquier ia mais longe: "Todo indivíduo que de uma forma qualquer favoreça os desígnios de nossos adversários será considerado como um traidor e tratado como tal". Uma política que, posta em prática, só podia levar ao extermínio, a fórmula totalitária para tentar acabar com o dissenso entre os homens.

 

*JORNALISTA

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