STF limita tutela coletiva de direitos

 A jurisdição constitucional brasileira mudou bastante nas últimas décadas. Uma  novidade veio da Emenda Constitucional 45, de 2004, que criou a repercussão geral. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal, quando julga um caso - fazendo o chamado controle difuso de constitucionalidade - acaba por criar uma orientação geral e abstrata. É como se ele "legislasse" a partir de um processo concreto. Essa orientação será depois estendida para casos semelhantes, que ficam parados na instância inferior aguardando o que dirá o STF.

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Por Supremo em Pauta
Atualização:

Daí o amplo interesse em conhecer e discutir as decisões do tribunal, mesmo em processos que parecem menores. Olhando para eles, descobrimos quais "leis" o tribunal anda criando, e como as cria. No fundo, esta pergunta interessa a todo o país e não só aos juristas: será que o método de fabricação das decisões do STF é melhor que o das salsichas e leis do Congresso Nacional?

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Foi publicado há poucos dias um acórdão do STF em assunto delicado (RE 573.232/SC, j. 14.05.2014). A decisão terá repercussão geral e vai causar impacto. A Associação Catarinense do Ministério Público, calcada em autorizações individuais de alguns associados, ajuizou ação contra a União pleiteando verbas remuneratórias. Acabou tendo sucesso. Aí alguns associados, que não tinham dado autorização individual para a ação, pediram a execução da sentença em seu próprio benefício. Alegaram que a associação representava também a eles, já que no estatuto havia autorização ampla para isso.

Daí a dúvida que foi dar no STF: a quem aproveita a sentença judicial que, a pedido de uma associação, reconhece direito da categoria? Em pauta, a norma do art. 5º, XXI da Constituição: "as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente". Os ministros divergiram sobre o assunto. E acabou vingando a solução restritiva. Foi como se o STF baixasse "uma lei geral" dizendo que os direitos reconhecidos em ação movida por associação só valem para os associados que, por terem assinado individualmente uma autorização, estavam envolvidos desde o início. Os demais associados, apesar da situação objetiva idêntica, estão fora.

Interpretando o que é a tal "autorização expressa" de que fala o art. 5º, XXI, o STF disse, portanto, que se trata de uma autorização não só expressa, como também individual e específica. Assim, o critério para fruir algum direito reconhecido judicialmente passa a ser este: ter ou não dado uma autorização individual e específica. De onde veio essa interpretação?

O voto condutor da maioria, do min. Marco Aurélio, usou  dois argumentos principais. O primeiro é que o caso seria de "substituição processual" e ela seria inviável com mera autorização genérica de representação em estatuto social. O segundo é que o título executivo judicial não poderia ser "alterado" em desfavor da entidade pública condenada, para incluir como credor um associado que não constara de início.

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Para os ministros vencidos, Ricardo Lewandowski (relator originário) e Joaquim Barbosa (acompanhados por Cármen Lúcia), as peculiaridades da tutela de direitos e interesses transindividuais exigem a reformulação de institutos clássicos do direito processual, como legitimidade, substituição processual e coisa julgada. É forte o argumento de Lewandowski de que isso seria decorrência da democracia participativa que buscamos construir, por meio do empoderamento das instituições da sociedade civil, em complemento à tradicional democracia apenas representativa. Só que a maioria do STF não se convenceu, e seguiu a visão mais clássica, das lides individuais, a qual foi defendida nestes termos por Marco Aurélio: "o Direito, principalmente o instrumental, é avesso a atalhos".

O tema julgado pelo STF coloca em jogo duas racionalidades antagônicas: o formalismo jurídico e a instrumentalização do Direito. A aplicação da doutrina clássica favorece, em tese, a segurança jurídica, evitando críticas no sentido do ativismo judicial e da ofensa ao princípio conformidade funcional. Já a flexibilização de institutos do direito processual representa um reforço aos instrumentos de proteção de interesses coletivos, mesmo contra o erário público, pois permite a mais interessados executar seus créditos. O STF preferiu o formalismo.

Mas parece exagerado chamar de atalho a dispensa de autorização individual específica.  Eram fortes os fundamentos dos votos vencidos. Como ignorar as razões práticas evidentes, que sugerem que autorizações para a defesa dos interesses de uma coletividade só são de fato viáveis se forem também coletivas? Ademais, por que minimizar o efeito da autorização do estatuto, negando-lhe o caráter de manifestação de vontade em prol da substituição processual, em caso de tutela coletiva? Quanto ao título executivo, não é normal nas ações coletivas que ele não relacione todos os potenciais credores? Aplicar aqui a visão tradicional não é no fundo um modo de neutralizar as tendências legislativas quanto à tutela coletiva de direitos? Afinal, queremos a tutela coletiva de direitos ou temos medo dela? Quem tem razões para temer a tutela coletiva?

É interessante que o STF já permitira anteriormente ao sindicalizado executar decisão favorável ao seu sindicato, ainda que sem autorização expressa para substituição processual (AI 803.293-AgR/2013 e RE 696.845-AgR/2012, citando precedentes). Também  acolheu mandado de segurança coletivo ajuizado por associação, mesmo não acompanhado da lista de associados outorgando poderes (RE 501.953/2012). Aliás, há até a súmula 629 com visão mais ampla, embora adstrita ao mandado de segurança coletivo: "A impetração de mandado de segurança coletivo por entidade de classe em favor dos associados independe da autorização destes".

O maior problema da decisão agora tomada pelo tribunal atina à aplicação da mesma orientação para casos futuros, como nas searas ambiental e do consumidor. Se o executado fosse uma grande empresa poluidora ou um banco privado, teria o Supremo decidido no mesmo sentido? Como exigir que uma associação busque autorização individual de todos os prejudicados em eventual dano ao meio ambiente ou ao consumidor?

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A decisão nos permite discutir também o método usado para selecionar o caso que se presta a servir como paradigma para efeitos de repercussão geral. A lógica decisória adotada para apreciar um recurso pode ser boa para o conflito em específico, mas imprópria se a decisão vai servir como norma geral para casos futuros, não tão equiparáveis ao paradigma. O próprio Marco Aurélio reconheceu, no julgamento, que o caso não era favorável à formação do precedente. Disse ele: "a situação sequer é uma situação favorável a elucidar-se a diferença entre representação e substituição processual, a elucidar-se o alcance do preceito do artigo 5º [da Constituição Federal]".

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Bem verdade que, segundo o art. 543-B, §1º, do Código de Processo Civil, cabe ao tribunal de origem selecionar a lide paradigmática que será enviada ao Supremo. Mas, para além da apreciação da existência ou não de repercussão geral, há um segundo filtro a ser realizado pelo próprio Supremo antes da deliberação de mérito, filtro este quanto à potencialidade de, sem distorções interpretativas, aplicar o caso paradigma a conflitos outros.

Não é nada prudente julgar uma repercussão geral, fazendo assim uma "lei" sobre um importante instrumento para tutela de direitos, sem refletir de modo explícito sobre o impacto do julgamento na substituição processual por entidade associativa nas variadas situações que podem aparecer. A própria Corte reconheceu a impropriedade do caso para elucidação de conceitos importantes na disciplina processual.

Oliver Holmes, observando a common law do século XIX, já apontava que a normatização com base em litígios excepcionalmente sensíveis não é meio adequado para criar  fórmulas gerais ("hard cases make bad law"). Com a abstrativização do controle difuso, as consequências da seleção ruim de paradigma podem ser tão nefastas quanto a má decisão de mérito. O desafio do sistema de repercussão geral não está apenas na melhor decisão, mas também na melhor escolha do recurso paradigma. Se a Corte é tão avessa a atalhos como argumenta ser, é prudente que aperfeiçoe o sistema de escolha dos recursos representativos e evidencie a quem interessa e qual o alcance de sua lógica decisória.

Carlos Ari Sundfeld é professor da FGV Direito SP, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público - SBDP e colaborador do Supremo em Pauta da FGV Direito SP. André Luis M. Freireé bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, advogado em São Paulo e foi aluno da Escola de Formação da SBDP em 2012.

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