O sistema constitucional brasileiro prevê uma série de mecanismos para que a vontade eleitoral seja respeitada e também para que o governante eleito seja responsável pelos atos praticados durante o exercício da função pública. Trata-se de um delicado equilíbrio entre legitimidade e responsabilidade.
O pedido de impeachment navega exatamente nesse limite. Para que ele seja juridicamente viável, deve ter justa causa. Em outras palavras, deve ter fundamento na lei e na Constituição. Aqui já está o primeiro debate sobre o impeachment: houve, ou não, crime de responsabilidade passível de cassação de mandato da presidente?
De outro lado, trata-se de um julgamento político, pelas instâncias políticas. As definições muito genéricas dos crimes de responsabilidade previstos na Constituição e na lei dão margem a decisões políticas de consequências graves: a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de função pública por oito anos. Serão a Câmara dos Deputados e o Senado Federal os espaços do julgamento político, desde que as condutas da presidente se enquadrem nas hipóteses normativas, o que não é muito difícil tendo em vista o caráter genérico das previsões.
E qual o papel do Supremo Tribunal Federal nesse processo? A Corte deverá ser a mediadora da legalidade não só para garantir o respeito à ampla defesa e ao contraditório à Presidente agora acusada de praticar crime de responsabilidade, mas também para analisar outros aspectos procedimentais, como já fez quando suspendeu, em outubro, o rito do processo de impeachment criado por Eduardo Cunha. Não será uma surpresa se o STF também for instado a se manifestar sobre questões que estão numa zona cinzenta entre o campo jurídico e a arena política. Afinal, as pedaladas fiscais são crime de responsabilidade ou não? Esse é um tema a ser decidido pelo Supremo ou pelo Congresso? Por mais que estejamos diante de um processo político, não se pode afastar a atuação do Judiciário se a percepção for a de que não há, minimamente, a caracterização de um crime de responsabilidade.
Se, mundo afora, os sistemas presidencialistas vêm se aproximando do parlamentarismo e vice-versa, o nosso presidencialismo não admite a destituição da presidente eleita democraticamente em razão da impopularidade superveniente, como se houvesse uma previsão constitucional de moção de censura. O nosso ordenamento jurídico também não prevê o recall, ou seja, a revogação do mandato da presidente da República por votação da população arrependida.
Portanto, para o impeachment, é imprescindível a conjugação de dois fatores: além da justa causa jurídica, ou seja, a configuração de um crime de responsabilidade previsto na lei e na Constituição, o chefe do Executivo deve ter perdido, significativamente, o apoio parlamentar.
A democracia pressupõe que os atores envolvidos cumpram seus papéis institucionais e que, ao fazê-lo, promovam controles mútuos. Qualquer desequilíbrio nessa relação poderá gerar abusos de poder.
Eloísa Machado, professora da FGV Direito SP e coordenadora do Supremo em Pauta. Roberto Dias, coordenador do curso da FGV Direito SP
Texto originalmente publicado no blog do Fausto Macedo