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Guerra fiscal e aplicação do princípio da proporcionalidade para justificar a modulação dos efeitos relativos a concessão de benefícios fiscais

Por Supremo em Pauta
Atualização:

1. ADI 4.481 - INCONSTITUCIONALIDADE DE BENEFÍCIOS FISCAIS PARA O ICMS E MODULAÇÃO DOS EFEITOS EM NOME DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA BOA-FÉ DOS CONTRIBUINTES

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Conforme antecipado em nosso artigo da semana anterior "Antes da Pauta"[1], ocorreu ontem o julgamento da ADI 4.481 (rel. min. Roberto Barroso), sobre a concessão de benefício fiscal em matéria de ICMS sem amparo na Lei Complentar 24/75 e no art. 155, XII, g da Constituição de 1988. O assunto mereceu excelente artigo do Prof. Aldo de Paula Jr., publicado hoje no JOTA.[2]

O argumento central do voto do Min. Roberto Barroso reconheceu a inconstitucionalidade da lei do Estado do Paraná que concedeu benefícios fiscais sem amparo em convênio Confaz (art. 155, XII, g da Constituição de 1988).

1.1. Modulação e a ponderação jurídica proposta pelo Min. Barroso: entre o desrespeito ao procedimento legal do art. 155, XII, "g" e a segurança jurídica e a boa-fé dos contribuintes do Estado do Paraná

No exame do pedido para modulação temporal, a Corte levou em consideração o longo tempo no qual os benefícios estiveram em plena eficácia e a boa-fé dos contribuintes na presunção de validade de tais benefícios que vigoraram ao menos oito anos até que o STF examinasse o mérito da ação direta de inconstitucionalidade.

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Segundo apontou o Min. Roberto Barroso, os contribuintes se submeteram à legislação impugnada com a confiança decorrente da presunção de constitucionalidade dos atos emanados do Poder Público. Tal legislação pautou o planejamento dos contribuintes, condicionando as condutas de empresas e das autoridades fiscais locais.

Como observou o Min. Roberto Barroso, o tempo necessário ao desate final das questões de mérito postas no controle concentrado de constitucionalidade compõe também o reforço às expectativas legítimas dos jurisdicionados quanto ao texto legal impugnado.

Uma das expressões utilizadas pelo Min. Roberto Barroso foi o temor ao "crime compensar", para designar a situação em que um texto legal que deveria se saber inconstitucional mantém seus efeitos, por modulação temporal, devido ao tempo que a Corte necessitou para julgar o mérito de uma ação ou de um recurso que sobre ele versava.

Evidentemente, como a legislação provém dos próprios entes tributantes, não se pode atribuir aos contribuintes qualquer responsabilidade pela consolidação de situações causadas diretamente pelos estados, pelo Distrito Federal e pelas dificuldades enfrentadas pelo Judiciário (com sua carga descomunal de trabalho). Há bastante tempo a Corte tem se deparado com questões cujas consequências são desfavoráveis à população de um ente federado faltoso, sem que exista mecanismo legal para penalização do próprio gestor público eventualmente responsável. Isso é bastante comum nas ações cíveis originárias em que se debate violação da Lei de Responsabilidade Fiscal e está ficando cada vez mais presente em matéria de direitos do contribuinte.

Em síntese, o tempo em que o contribuinte seguiu orientações firmadas em legislação, na jurisprudência ou na prática aceita pelas autoridades fiscais é diretamente proporcional ao fortalecimento da confiança na adequação e na correção da conduta prescrita. O Poder Público não pode ignorar essa confiança, sob pena de, figurativamente, fazer o "crime compensar".

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1.2. Caso ADI 429/CE e formação de tendência jurisprudencial do STF em matéria de defesa da segurança jurídica do contribuinte no controle de constitucionalidade da concessão de benefícios fiscais

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O STF já havia modulado temporalmente os efeitos de decisão declaratória da inconstitucionalidade de benefícios fiscais no julgamento da ADI 429 (sessão de 22/08/2014). Naquela oportunidade, a Corte assegurou à legislação cearense que concedia benefícios fiscais à portadores de deficiência física, o prazo de sobrevida de doze meses, a partir da publicação da respectiva ata de julgamento (o que ocorreu em 03/09/2014).

O julgamento da ADI 429 indicou que o Supremo Tribunal Federal permanece atento aos danos sociais e econômicos das declarações de inconstitucionalidade de benefícios fiscais. Em especial, os riscos a que se sujeitam direta ou indiretamente as pessoas físicas aos reflexos da tributação do ICMS sobre os preços das mercadorias.

A modulação temporal realizada no julgamento da ADI 429, também, na linha do voto da ADI 4481, tem dimensão ligada à defesa da segurança jurídica e da boa-fé dos contribuintes. É importante lembrar que os valores cobrados a título de ICMS integram obrigatoriamente a base de cálculo do próprio imposto, isto é, "o tributo é repassado no preço ao consumidor". Ao final, é o consumidor que arca com o peso da carga tributária, de modo a ser muitas vezes chamado de "contribuinte de fato".

Assim, a invalidação imediata dos benefícios fiscais teria por efeito, em relação ao futuro, forçar os "contribuintes de direito" a reajustarem o valor de suas operações. Os imediatamente prejudicados seriam os consumidores (contribuintes de fato) dos produtos destinados aos deficientes físicos. Um consumidor que estivesse planejando a aquisição de um desses produtos seria pego, inadvertidamente, pela alta do preço.

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Dessa forma, o julgamento da ADI 429 abre a discussão sobre a modulação temporal dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade de benefício fiscal tanto para segurança jurídica dos contribuintes de direito (empresas) como para o relevante interesse social dos efeitos da decisão para os contribuintes de fato (cidadão consumidor).

1.3. Possíveis reflexos jurídicos para a modulação dos efeitos da PSV 69 na interpretação do art. 150 § 6º da Constituição

No julgamento da ADI 4.481, o Min. Barroso chama a atenção para o necessário respeito à boa-fé e à segurança jurídica do contribuinte perante a incerteza dos procedimentos legislativos empreendidos na prática da guerra fiscal entre os Estados.

Desta forma, coloca-se a importância de se saber, também, qual será o entendimento do STF para os casos em há convênio CONFAZ, tal qual disposto no texto da PSV 69[3], porém, com dúvida a respeito do instrumento legal utilizado para internalizar esses benefícios. Ou seja, além do convênio CONFAZ, é necessária: (i) a edição de "lei estadual específica" em conformidade ao princípio da legalidade ex vi do art. 150, I; ou basta (ii) a internalização por decreto estadual (do Executivo ou do Legislativo), em aberta exceção à legalidade?

Vejamos o que determina o art. 150, § 6º da Constituição de 1988: "Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g".

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Ora, segundo a redação do art. 150, § 6º, a necessidade de previsão em lei específica para a validade de qualquer benefício fiscal não prejudica a reserva de convênio interestadual especificamente para os benefícios relacionados ao ICMS. Surge, portanto, dúvida plausível: como deve ser interpretada a partícula "e", que normalmente tem função textual aditiva?

Noutras palavras, para os benefícios relacionados ao ICMS, além de prévio convênio autorizador celebrado no âmbito do Confaz, também é necessária lei ou legislação específica? Ou bastaria o convênio para criar o benefício fiscal, independentemente da resistência de algum ente federado em internalizá-lo?

A discussão não é meramente acadêmica. Por ocasião do julgamento do RE 539.130, a Segunda Turma do STF se deparou com esse problema. Naquele caso, o Estado do Rio Grande do Sul sustentava não lhe serem aplicáveis as normas que previam tratamento diferenciado e favorecido para as lojas francas (free shops), pois o Convênio Confaz 91/1991, que previa benefícios fiscais para esse tipo de pessoa jurídica, não teria sido internalizado por decreto do chefe do Poder Executivo local.

Em informações solicitadas pela Min. Ellen Gracie, relatora, o Estado do Rio Grande do Sul informou que os benefícios fiscais foram internalizados por decreto legislativo, instrumento que, segundo a compreensão das autoridades fiscais, não era o instrumento adequado para tanto.

A Corte concluiu que, diante da complexidade da legislação tributária, a dúvida sobre a densidade normativa dos convênios interestaduais e o alcance da palavra "lei" para abarcar apenas "lei em sentido estrito" ou "legislação" (o que incluiria tanto os decretos do chefe do Executivo como os decretos legislativos), qualquer que fosse a solução adotada, não poderia prejudicar os contribuintes.

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1.4. Aplicação do princípio da proporcionalidade em sentido estrito no voto do Min. Barroso e possíveis reflexos no julgamento de outros casos que envolvam benefícios fiscais

A nosso sentir, o argumento utilizado pelo Min. Barroso para justificar a modulação temporal dos efeitos é típico da aplicação do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, embora ele não tenha sido expressamente invocado.

No teste da aplicação da proporcionalidade em sentido estrito, o intérprete pondera a intensidade de violação a dois ou mais direitos fundamentais, que estariam em colisão.

Na ADI 4.481, a colisão se deu entre a expectativa à declaração de inconstitucionalidade de benefício fiscal e a expectativa dos contribuintes à estabilidade de suas relações com as autoridades fiscais estaduais, fundadas no texto legal impugnado.

A questão era qual seria o mal maior: (i) tolerar a manutenção dos benefícios inconstitucionais, por um período de tempo determinado; (ii) ou impor a inúmeros contribuintes o ressarcimento de dano ao qual não deram causa?

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Certamente, a Constituição repudia normas que com ela não são compatíveis. Porém, as consequências da declaração de inconstitucionalidade pura e simples recairiam sobre os contribuintes que não tinham opção senão seguir a legislação que lhes foi imposta por um ente federado por representantes políticos legitimados pelo voto e para a criação de leis.

Nessa ponderação, a Corte prestigiou a boa-fé dos contribuintes que podem e devem esperar do Estado postura coerente com os postulados da segurança jurídica e do devido processo legal.

As decisões na ADI 429 e na ADI 4.481 sinalizam o surgimento de padrão aplicável ao controle de constitucionalidade de benefícios fiscais. Sem abrir mão da guarda da Constituição, o Supremo Tribunal Federal busca critérios determinantes que motivem a proteção dos contribuintes, que são terceiros pegos no fogo cruzado entre os entes tributantes, esses os verdadeiros combatentes da guerra fiscal.

Esses critérios determinantes se referem ao grau de confiança gerado pela legislação impugnada e pela extensão dos danos que serão suportados pelos contribuintes como efeito colateral da declaração de inconstitucionalidade do benefício fiscal.

Por exemplo, no caso a que se refere o Tema 299 da Repercussão Geral (RE 635.688), a Corte enfrentou duas questões relevantes, calcadas em antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e nas práticas dos estados e do Distrito Federal para concessão de benefícios fiscais aos produtos da cesta básica.

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De um lado, venerável linha de precedentes de relatoria do Min. Moreira Alves reconhecia o caráter impositivo dos convênios interestaduais, cujas disposições deveriam ser integralmente observadas por cada um dos Estados e pelo Distrito Federal.

De outro, até 2005, a Corte reconhecia que os fenômenos da isenção e da "redução da base de cálculo" eram distintos e que, portanto, as restrições aos créditos de não-cumulatividade aplicáveis à "isenção" eram inaplicáveis à "redução da base de cálculo".

Importa destacar 5 (cinco) razões que explicam o surgimento da expressão "redução de base de cálculo", no alvorecer da guerra fiscal, como conceito-solução para que os Estados iludissem a Constituição Federal (1967) e o Código Tributário Nacional (1966): (i) driblar a alíquota uniforme a ser fixada pelo Senado Federal ex vi do art. 24, § 4º da CF67; (ii) contornar a exigência de lei estadual para alteração de alíquotas exigida pelo art. 97, IV, da Lei 5172/66 (CTN); (iii) desviar da exigência de lei estadual para "exclusão do crédito tributário" ex vi do art. 97, VI, da Lei 5172/66 (CTN); (iv) iludir a regra que determina que a "isenção" decorre sempre de lei ex vi do art. 176 da Lei 5172/66 (CTN) e; enfim, (v) dificultar o controle de constitucionalidade do STF, dado que havia à época dúvida acerca do cabimento de controle direto sobre os meros "decretos" que veiculavam as oportunas "reduções de base de cálculo".

Somente em 2014, com o julgamento do RE 635.688, é que o Supremo Tribunal Federal deu interpretação ampla e vinculante ao estorno de créditos na hipótese de redução de base de cálculo, bem como declarou que os convênios interestaduais seriam meramente autorizativos.

Sobre esse caso, pende exame de pedidos de modulação temporal dos efeitos não apenas da decisão, mas da eficácia vinculante ínsita à repercussão geral de matéria constitucional.

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2. PSVs 95, 98

As PSVs 95, 98 traziam temas bem estáveis na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sobre a sujeição passiva possível da contribuição confederativa (art. 8º, IV da Constituição de 1988) e sobre a inconstitucionalidade da criação de taxa motivada pela prestação de serviço público de iluminação pública.

Em especial, com a introdução do art. 149-A na Constituição (EC 39/2002), diminuiu-se a necessidade de criação de um mecanismo para acelerar o julgamento de ações ou de recursos sobre taxa de iluminação pública, dado que essa modalidade de tributo vem sendo paulatinamente substituída por aquela.

3. ACO 758 - IMPLICAÇÕES DA CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS OU DE INCENTIVOS NA PARTILHA DO PRODUTO ARRECADO COM IMPOSTOS

A ACO 758 (rel. min. Marco Aurélio) não teve o julgamento encerrado, em virtude de pedido de vista formulado pelo eminente Ministro Gilmar Mendes. Trata-se de uma ação cujo julgamento vale a pena acompanhar, devido aos temas constitucionais tratados (uma "petition to watch", na linguagem usada pelos que acompanham a vida da Suprema Corte dos Estados Unidos, a SCOTUS).

Trata-se de uma ação ajuizada em 2004, o que a faz ser um "processo placa-baixa", na linguagem coloquial interna de alguns gabinetes (quer dizer, um processo antigo). A dificuldade que a Corte tem para finalizar questões mais polêmicas sugere uma rediscussão dos protocolos e da ritualística de debates entre os ministros. O Min. Roberto Barroso já se manifestou publicamente mais de uma vez com esboços de propostas para alterar a dinâmica dos julgamentos, especialmente quanto aos debates, mas desconhecemos a existência de propostas formais.

Vale lembrar que os debates realizados pelos membros da SCOTUS ocorrem a portas fechadas, vedado o acesso de qualquer outra pessoa que não seja um Justice. Até mesmo os indispensáveis assessores (law clerks), às vezes responsáveis pela redação inicial dos votos (opinions) são barrados desses verdadeiros conclaves.

Outro ponto constitucional importante da discussão se refere ao resgate do Direito Financeiro pelos estudiosos do Direito Tributário. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reflete a dificuldade que a própria Academia tem ao observar fenômenos normativos limítrofes entre tributação e o uso de recursos públicos. Por exemplo, uma dessas dificuldades é saber-se qual a solução jurídica a ser dada para um tributo cuja validade constitucional está atrelada à destinação específica do produto arrecadado.

Eurico Marcos Diniz de Santi e Thiago Buschinelli Sorrentino, professor e coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV Direito SP e pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV Direito SP, respectivamente.

Artigo originariamente publicado no Jota, em 13 de março de 2015.


[2] http://jota.info/a-guerra-fiscal-esta-morta-vida-longa-a-guerra-fiscal [3] PSV 69: "Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, é inconstitucional".

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