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Direto ao assunto

Autoridade ausente

Estado brasileiro nem se solidariza com vítimas de tragédias que produz

Por José Neumanne
Atualização:

Enquanto Exército tenta fazer de Vila Kennedy modelo para a intervenção, violência espalha-se pelo Rio. Foto: Ellian Lustosa/Código 19

Foi noticiado que o presidente Michel Temer iria ao Rio no domingo 18 de março para celebrar o primeiro mês da meia intervenção militar, dita federal, na segurança pública do Rio de Janeiro. Mas ele não demorou muito para desmarcar a viagem e ficou em Brasília. Esse é o maior símbolo da ausência decretada pelas autoridades brasileiras ao momentoso episódio político causado pela execução da vereadora Marielle Franco, do PSOL, na noite da quarta 14. Se nada havia a comemorar, muito havia - e ainda há -a lamentar. Inclusive a ausência da autoridade.

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A meia intervenção no Rio é uma tragédia de erros e se perde na noite dos séculos quando nos é dado analisar a evidência de que o princípio da ocupação da periferia e a transformação da antiga Cidade Maravilhosa no inferno a céu aberto tem a participação decisiva do Estado. Lembro-me bem, pois morava no Rio à ocasião, quando tudo se agravou. E digo que se agravou porque já então era notória a conivência de ex-governadores, como o famigerado Chagas Freitas e Marcelo Alencar, chamado de Velho Barreiro, com o jogo do bicho, disfarçado de contravenção penal. Leonel Brizola encontrou o pretexto politicamente correto para justificar o acobertamento dos bandidos que lhe serviam de cabos eleitorais: "Polícia minha não sobe em morro para bater no povo", dizia o socialista moreno.

Como houve também uma série de crimes de colarinho-branco, a Operação Lava Jato, que acaba de completar quatro anos de existência, desmascarou uma quadrilha no Estado do Rio, com penetração nos três Poderes. Seu chefe, o ex-governador Sérgio Cabral, já foi condenado a mais de 100 anos de cadeia e, no andar atual da carruagem, deve chegar a 300. Seus três mais notórios aliados na Assembleia Legislativa - Jorge Picciani, Paulo Mello e Edson Albertassi - estão presos e a Justiça os mantémna prisão para evitar que prejudiquem as investigações. Só uma conselheira do Tribunal de Contas do Estado escapou de vexaminosas prisões ou conduções coercitivas na Polícia Federal (PF). E nem os membros dos altos escalões da Justiça estadual dormem bem, por temerem a chegada dos agentes federais para arrancá-los do recesso do lar, doce lar.

Diante desse quadro, convicto de que não conseguiria fazer a reforma da Previdência, o presidente Michel Temer resolveu intervir para virar tudo pelo avesso, naquilo que seus aliados chamam de "golpe de mestre". Seu próprio marqueteiro pessoal, Elsinho Mouco, o definiu como algo que poderia ser "capitalizado politicamente". No entanto, para surpresa geral, inclusive deste escriba, o chefe do governo limitou-se a decretar uma intervenção militar apenas na segurança pública, deixando seu antigo aliado e correligionário Luiz Antônio Pezão, cria política e ex-vice de Sérgio Cabral, continuar com sua gestão desastrosa do Estado.

Na mesma ocasião em que a Operação Lava Jato - cujo braço fluminense é comandado pelo juiz Marcelo Bretas, que disputa em rigor com o paranaense Sergio Moro - completou quatro anos de existência, a meia intervenção militar, dita federal, de Temer fez um mês. A efeméride daria ocasião a discursos e pronunciamentos oficiais do chefe do Poder Executivo e tudo foi devidamente programado. Mas, repetindo a velha piada da pergunta de Garrincha a Feola -se o técnico da seleção de 1958 teria combinado o jogo que programava com os adversários russos - esqueceram-se de combinar com os milicianos. E passaram a impressão de que as tropas redentoras da paz social carioca não têm a mínima ideia de que bandidos teriam de combater em primeiro lugar.

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Aí, na quarta-feira 14 de março, à noite, enquanto seu time, o Flamengo, ganhava o primeiro jogo fora de casa numa Libertadores em quatro anos, a vereadora negra, esquerdista, homossexual e militante dos direitos humanos, crítica da violência policial e da intervenção militar, foi morta. Não foi vítima de uma bala perdida, como o menino abatido comprando algodão doce no Alemão. Foi executada com requintes de crime mafioso e o general Braga Netto ficou sabendo que não vai ser com operações-modelo na Vila Kennedy, uma invenção da Aliança Para o Progresso, velho engodo colonialista da época da guerra fria, que estancaráo sangue derramado nas calçadas, nem calará a matraca das metralhadoras.

O general é um engano a mais de Temer. O fuzilamento da líder (nascida na Maré) numa rua do Estácio, vindo da Lapa, bairros tradicionais da boêmia carioca dos tempos da Cidade Maravilhosa, origem e reduto do samba, foi, ao que, tudo indica, obra e desgraça de milicianos. O sociólogo José Cláudio Souza Alves, autor do livro Dos Barões ao Extermínío: A História da Violência na Baixada Fluminense, com 25 anos de expertise no local, deixou claro, em entrevista ao blog da revista Exame, que o verdadeiro desafio ao Estado na região que ele conhece muito melhor do que o novo secretário de Segurança, um general egresso do mais absoluto anonimato, como seu chefe interventor, não vem mais dos traficantes de drogas, que substituíram os bicheiros sambistas e hoje foram submetidos pela presença dos milicianos. Estes controlam, como já sabemos por notícias da imprensa, negócios e serviços públicos, como venda de água, fornecimento de sinais de televisão, celular e internet, entre outros.

O Estado já não domina o território das chamadas comunidades da periferia carioca há muito tempo. Ultimamente Sérgio Cabral inventou a fantasia de que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do então secretário de Segurança José Mariano Beltrame devolveria o território ao controle estatal. Tudo mentira, tudo propaganda.

Do mesmo partido de Cabral, Temer e seus ministros de confiança do Planalto inventaram outra ficção de propaganda com a intervenção meia-boca. No primeiro mês, tudo parece mais um filme da série dos Trapalhões. Na tarde do enterro de Marielle e do motorista Anderson Gomes, Temer fez uma festa no Palácio do Planalto e lhes dedicou um minuto de silêncio, que de fato durou 30 segundos, passando a ser a maior autoridade ausente no velório da vereadora. Apesar de ter divulgado um vídeo para a televisão afirmando que o atentado atingiu a democracia, não se fez presente nas exéquias da nova mártir. O ainda governador sem segurança Luiz Fernando Pezão também choramingou publicamente e evitou comparecer ao funeral. Assim como o prefeito Marcelo Crivella, que decretou três dias de luto e correu de medo das vaias da multidão, que se mostraram até contidas na hora de berrar seu habitual "fora Temer".

A autoridade ausente continua sendo a marca de um Estado conflagrado pela violência, onde os pobres usam serviços normalmente públicos vendidos a preços exorbitantes pelas prósperas milícias e sempre são assistidos pelos traficantes, agora em decadência financeira, quando o Estado falha. Enquanto o interventor, general Braga Netto, tratava de orçamento inexistente com o governador meio deposto, herdeiro do gatuno Cabral, a poucos metros do Palácio Duque de Caxias, patrono do Exército Nacional e chamado de o Pacificador, um homem foi morto por tiros não identificados no ponto de ônibus, tentando ir para o trabalho.

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A primeira semana após o primeiro mês de existência da intervenção começou sob o signo da confusão. O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, que supre o silêncio do interventor, que mantém distância da imprensa, criou uma trama policial ao afirmar, no sábado, que as balas de calibre 9 mm usadas no atentado eram de um lote comprado pela Polícia Federal e roubadas numa agência de correio em João Pessoa. Só que o presidente dos Correios, que não é russo e com quem Jungmann nada combinou, o desmentiu em nota. Na segunda-feira, o Ministério da Segurança Pública cumpriu o doloroso dever de comunicar que a imprensa entendeu mal o democomunista, que de jeito e maneira jamais teria dito o que disse, embora tenha sido gravado e retransmitido. Jungmann teria feito melhor se tivesse comparecido ao velório público da vítima. Mas também se ausentou. Assim como o general Braga Netto, que deu entrevista por e-mail ao Estado para garantir que "o assassinato de Marielle reforça os objetivos da ação federal no Estado, como reduzir a criminalidade".

De truísmo em truísmo, a autoridade ausente, como de hábito, vai promovendo a erosão da própria credibilidade, apesar de ainda lidar com a esperança dos cariocas, que, em sua maioria, a apoiam, ao contrário da vereadora executada. A questão é uma só: até quando?

  • Jornalista, ploeta e escritor

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