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Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Sobre golpes, incêndios e fantasias

Há duas questões que se devem associar à denúncia governista do "golpe" contra Dilma.

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Atualização:

Uma é técnica, conceitual. Existe mesmo um golpe em marcha ou a denúncia não passa de um slogan para incendiar a massa e tentar dar uma carta de navegação a ela? O afã religioso, dogmático, com que se tem aderido à ideia, justamente por ser dogmático, distorce fatos, reescreve a história de modo arbitrário e não se apoia em nenhuma teoria crítica. É aparentemente defensivo, mas constrói uma narrativa de guerra, sustentada por meias-verdades, caprichos retóricos, fantasias conspiratórias e defesa de interesses e posições. Traz consigo vetos antidemocráticos e estigmatizações nefastas, que criam um clima belicoso e só beneficiam os conservadores, os que querem que tudo fique como está.

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Todo este esforço, no fundo, é uma atualização da cultura petista clássica, que trafegou à margem da política democrática, detonando os 300 picaretas do Congresso, separando os cidadãos em bons e maus e batendo duro em tudo o que contrariasse suas convicções e seus interesses. As toxinas desta postura entraram na corrente sanguínea da sociedade, estragando parte do que se havia conseguido na luta pela redemocratização. Deseducou os brasileiros. O PT, como partido de massa, jamais se preocupou em fazer algo para dissolver estas cristalizações, nem mesmo quando chegou ao poder. Aliás, no poder, não só se desinteressou por completo disto (uma tarefa de construção de uma nova hegemonia, coisa que jamais esteve nos planos petistas), como trabalhou para reforçar doentiamente o maniqueísmo e a simplificação. O feitiço, agora, se volta contra o feiticeiro, mas também atinge o conjunto dos democratas progressistas.

A outra questão é política e diz respeito às consequências daquilo que se faz e se fala. Se não há golpe mas se insiste em dizer que há -- a ponto da presidente da República comparar a situação atual com o período de 1964, vislumbrando uma ditadura que desponta --, o que se pretende com isso e que efeitos isso produzirá?

Se um slogan errado é martelado incansavelmente e entra na cabeça das pessoas, ele pode fazer com que elas fiquem mais cegas e alheias ao que de fato acontece. Faz com que se engajem num caminho equivocado, forçando-as a gastar energias que poderão fazer falta mais à frente. Não as auxilia a ver a vida como ela é.

Agitar um slogan que tromba com a realidade mas tem alta potência passional e é impulsionado por demonstrações massivas de força, que fazem com que o tom suba a cada passo, não ajudará a que se consiga achar uma luz no fim do túnel. Tirará da luta democrática real um punhado de militantes e ativistas de valor, empurrando-os para fora da política e a autoilusão. Fará com que a taxa de risco à democracia aumente e a conflitualidade social cresça e fique fora de controle.

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Por essa via, ajudará a jogar mais gasolina na fogueira que já arde, e na qual se queimará sobretudo a esquerda.

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

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