EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Sobre crises, golpes e saídas políticas

O tema das crises é polêmico. O uso comum do termo sugere cenários apocalípticos, mas sua raiz etimológica não: em grego, krisis significa essencialmente a abertura de uma situação à espera de um desfecho - um momento de decisão, em que se define a sorte de um processo político, de um governo ou de um paciente. Toda crise contém a semente de algo novo. Neste sentido, ela valoriza o manejo, a direção: é a hora do talento se sobrepor às imposições da realidade.

PUBLICIDADE

Foto do author Marco Aurélio Nogueira
Atualização:

No mundo atual, tudo está "em crise": da economia e do Estado à política e à sociabilidade. A modernidade capitalista, ao se radicalizar, fez com que nada mais pudesse ter estabilidade e funcionar sem altas doses de incerteza. A sociedade não tem como se reproduzir sem ajustes sucessivos. Implodem-se as instituições dedicadas à organização e ao direcionamento (como os partidos políticos), com o que se vai projetando uma complicada "crise de autoridade e hegemonia": os que controlam o governo não conseguem mais dirigir e abusam da coerção, da fraude e da corrupção.

PUBLICIDADE

No Brasil, em particular, depois de um período em que os governos proclamaram que o País estaria imune a problemas e que o avanço social havia se tornado "definitivo", entramos em fase depressiva, na qual o tom do ajuste e da dificuldade prevalece sobre o do sucesso e da felicidade.

Entre o primeiro momento - os anos Lula - e os dias de hoje, tivemos o governo Dilma, entre 2011 e 2014. Foi um período complicado, marcado pelo improviso, pela falta de liderança e capacidade de governo, pela tentativa fracassada de se fixar uma "nova matriz econômica" e por um agravamento da disfuncionalidade do sistema político. O sistema perdeu o eixo, não tanto por suas regras, mas sim pelo fracasso de seus operadores: a "classe política" e os partidos. O governo foi-se inviabilizando, até cair numa vala, bloqueada por todos os lados.

Dilma não teve como corrigir a rota, desprovida que esteve de habilidade, apoio e convicção. Nas eleições presidenciais de 2014, a crise já atingira nível agudo e o jeito foi esconder os problemas para ganhar as eleições e seguir em frente. Para isso, adversários foram agredidos e a presidente-candidata adotou uma postura falsa e demagógica. As urnas a beneficiaram, mas por pouco.

Seu segundo governo começou com a crise a pleno vapor. Não teve como usufruir de qualquer tipo de tolerância da sociedade ou dos políticos. A economia pedindo água, políticas públicas sendo desativadas, a base aliada se decompondo, o País atarantado, sem saber para onde ir. O encolhimento dos políticos, sua entrega à política pequena, o empobrecimento assustador da linguagem do poder, a ruindade do ministério, a falta de coordenação, tudo ajudou a que o governo, três meses após a posse, fosse jogado nas cordas, de onde não consegue sair.

Publicidade

As cassandras ressurgiram. Cresceu a imagem da crise que a tudo arrasta e contamina. Eduardo Cunha se julga vítima de um "golpe" do Planalto, Dilma vê na oposição a seu governo uma atitude "golpista" e o PSDB associa a vitória do PT em 2014 a um "estelionato eleitoral". Cogita-se abertamente da queda de Dilma e de seu impedimento, como se o governo não mais existisse. Ninguém olha a crise nos olhos.

Coube ao senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) lembrar que "Dilma não é Collor", afastado da Presidência em 1992. "Dilma tem respeitabilidade pessoal, um partido e o apoio de movimentos sociais".

A associação oportunista entre crise e mudança de governo impede que se valorize a que há de avanço democrático no País.

Há ganhos importantes de transparência e fiscalização. Corrupção, trambiques, enriquecimento ilícito, manipulação política de empresas, financiamentos irregulares de pessoas e partidos, tudo está vindo à tona em escala inédita, sob o impulso de um eficiente trabalho institucional. O Poder Judiciário agigantou-se, a Polícia Federal, o Ministério Público e os Tribunais de Conta ganharam poder, a mídia cresceu em capacidade investigativa e de denúncia. A situação só não evoluiu mais positivamente porque falta mobilização social, não há liderança política de peso e o Parlamento está suspenso no ar, com vários de seus integrantes, a começar dos presidentes da Câmara e do Senado, investigados por transgressão. E, também, porque o governo não pode entregar seus anéis mais preciosos.

As vias para a saída da crise se estreitaram, mas não estão bloqueadas.

Publicidade

Sem iniciativa, o governo se fecha em copas: não negocia, não cede, não concede. Os políticos o atacam, mas não conseguem feri-lo de morte. No caos instaurado, o governo se equilibra e respira. Mas lhe falta o básico para reagir.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

O espalhafatoso rompimento do presidente da Câmara com o governo não joga o País em uma "crise institucional". É como insinuar que a continuidade das tensões provocadas pela Lava-Jato ameaça o Estado democrático. Há, no entanto, uma evidente e complicada crise no país, que deita raízes na crise economia, na governabilidade, na ética e na política.

O mais inteligente, agora, é ver como o avanço das investigações pode abrir espaço para a emergência de novas lideranças, para a busca de articulações que isolem os retrógrados, fortaleçam as instituições e reagrupem os democratas. Se um sistema político dá sinais de falência, outro desponta impulsionado pelo ativismo social e pela democratização que se vem processando desde os anos 1980. Toda crise, afinal, destrói, desorganiza e força a reorganização.

Se há um Eduardo Cunha querendo travar o governo, se o caos geral ameaça a economia, exaspera a sociedade e cria insumos para regressões institucionais, mas se há, ao mesmo tempo, indícios claros de que se está varrendo um tanto de entulho privatista, oligárquico e antirrepublicano, então os democratas (do governo e da oposição) deveriam conversar. Coisa, aliás, que já poderiam estar fazendo há tempo.

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.