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Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Radicalismo retórico e performático bloqueia avanços democráticos

Poucos eventos recentes mostram tão bem quão resistente é o clima de excitação improdutiva em que nos encontramos quanto o entrevero envolvendo o escritor Raduan Nassar e o ministro Roberto Freire, da Cultura, na entrega do Prêmio Camões, dia 16 p.p.

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Atualização:

Os fatos são conhecidos, tamanha foi a repercussão que tiveram nas redes.

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Um escritor é premiado. Comparece ao ato e em vez falar de sua obra, fazer uma reflexão sobre o estado do mundo, defender uma política para a cultura ou valorizar os intelectuais, resolve desancar o governo que lhe entregava o prêmio. Estava no seu direito, queria se mostrar engajado, convencido de que os "tempos são sombrios", cheios de violências e arbitrariedades. Diz que não pode ficar calado diante do "golpe" que teria instituído um "governo opressor", que é "contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades federais de ensino gratuito, contra a diplomacia ativa e altiva de Celso Amorim".

Fez uma intervenção curta e incisiva, juntando fatos em torno de uma narrativa que responsabiliza o governo Temer e particularmente seu ex-ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. Juntou alhos com bugalhos. Mas estava no seu direito. Ninguém em sã consciência poderá criticá-lo por isso.

O ministro procurou reagir, defender o governo que representava na cerimônia. Começou ponderando que "pessoas da nossa geração sabem bem o que é um golpe efetivo" e que hoje, no Brasil, a democracia vigora plenamente, tanto que o governo estava ali premiando "um adversário político", como nenhuma ditadura faria. Mencionou que acusam o governo de ser ilegítimo, mas não o vem como ilegítimo quando entrega um prêmio. A plateia presente não se conforma, passa a vaiar o ministro e a gritar "fora Temer". O ministro se inflama, fugindo do script original e se deixando levar pela emoção. A plateia vai à loucura e busca impedi-lo de falar.

Fechem-se as cortinas.

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Converter um ato simbólico, cultural e político (com "p" maiúsculo) em manifestação contra o governo serve para pouca coisa. Não há porque impedir ou condenar que se faça isso, mas é razoável que se procure indagar sobre a eficácia. Na melhor das hipóteses, atos assim dão vazão à indignação que alguns carregam no bolso e usam a qualquer pretexto. Raduan Nassar - um homem digno, discreto, silencioso - acabou envolvido em uma cena grotesca, típica de comédia pastelão. Era uma unanimidade. Com o episódio, perdeu alguns admiradores, ainda que também tenha ficado mais conhecido por outros.  Nada que deslustre sua obra ou o rebaixe. De certa maneira, porém, entrou numa fria, acabando por protagonizar um episódio de ódio e irracionalidade, vazio da serenidade típica dos ambientes intelectuais, hoje muito em falta entre nós.

Pode-se criticar a reação do ministro, que no confronto com a plateia subiu desnecessariamente o tom. Isso, porém, não altera o contexto, só o torna mais visível. Assistindo ao vídeo com sua intervenção, fica evidente que não houve qualquer "ofensa" a Raduan, como foi vocalizado por alguns. Freire propôs-se a falar com calma, procurou contemporizar, deu voltas,aceitando o contraditório e a contestação, mas tentando por alguns pingos nos iis. Não censurou Raduan, nem sequer o criticou. Fez o que qualquer ministro faria: defendeu o governo de que participa. Pode não ter sido feliz em toda a fala, mas não atropelou nada. Para ele, "Raduan por sua obra merece plenamente a homenagem". A plateia, porém, estava cega e enraivecida: vaiou, agrediu, tentou impedi-lo de falar.

Não vale a pena, a meu ver, entrar em pormenores ou lembrar a biografia de cada um dos dois envolvidos principais. Roberto Freire e Raduan Nassar são, cada um a seu modo, figuras que devem ser respeitadas, por mais imperfeições e defeitos possam ter. Em termos políticos, foi um fato menor, que só ganhou amplitude porque os dias que correm estão tortos demais.

Nos dias seguintes, a repercussão amplificou e distorceu o episódio. Raduan foi apresentado como "herói" político. Adversários do governo aproveitaram-se para derramar sobre Roberto Freire uma carga de fúria e ressentimento, acusando-o de ter "traído o PCB" e as esquerdas, de ser um "golpista" de primeira hora e um "canalha".

Tudo está fora de foco nas manifestações que falam em "golpe" e em "fora Temer". O slogan virou commodity que se oferece a qualquer preço e que, portanto, só serve para que vendedores de ilusões tentem se instalar no mercado. É um produto de má qualidade, porque lhe faltam atributos políticos, teóricos e conceituais.

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A miséria das manifestações explica porque é que, hoje, nada incomoda o governo, a não ser suas próprias contradições internas, que não serão suficientes para pô-lo para "fora". Se qualquer coisa vira pretexto para se atacar o governo, fica-se sem alvo claro e nenhum ataque surte efeito. Dissipa-se energia à toa. E a pretensa indignação dos protestantes se dilui, como um berro, perdendo-se pelo caminho, atravancando a dinâmica político-social e ajudando a empurrar o país para baixo.

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Se o governo é de fato "ilegítimo", como pregam alguns, há que se combatê-lo no plano político, com seus tempos e suas regras. Se não há como promover uma revolta social e traduzi-la em uma "revolução", o jeito é educar os cidadãos e esperar pelas próximas eleições. A educação política dos cidadãos não se faz com slogans soltos ao léu, como pipas desgovernadas.

O quadro põe algumas interrogações dramáticas para as esquerdas e para os democratas coerentes. O clima atual, a cada dia mais polarizado e mais vazio de proposições progressistas razoáveis, atrapalha tudo. As pessoas pensam que ao agirem assim facilitarão o desgaste do governo, mas o que produzem é precisamente o contrário: agregam as forças governamentais, a classe média e todos aqueles que não aceitam que se faça política daquele jeito. Criado artificialmente, o clima só faz com que as esquerdas e os democratas permaneçam fora do jogo, com a cabeça enfiada na terra, ainda que esperneando.

O radicalismo retórico e performático é inimigo do avanço democrático. Não trabalha com a paciência, nem com a serenidade, não busca consensos nem se apoia numa teoria aprofundada, é pura emoção. Tem sido incapaz, no Brasil, de refletir criticamente sobre o processo que levou ao impeachment de Dilma, optando por associá-lo à imagem confortável de um "golpe". Termina assim por funcionar como um biombo de proteção.

Como evoluirá esse radicalismo? Atingirá um ponto em que suas vertentes mais histriônicas e patológicas se esvaziarão e derivarão para nichos minoritários caricaturais e inexpressivos, abrindo espaço para a contestação democrática efetiva e o diálogo produtivo? Ou continuará a se deixar levar pelo arranjo socioeconômico prevalecente, que desmonta a vida organizada e cria um caos ideológico que alimenta a polarização improdutiva e se reproduz como moto contínuo?

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Os progressistas (democratas liberais, comunistas, social-democratas, socialistas) sempre se dividiram muito. É da natureza deles. Somente à custa de muito empenho político conseguem caminhar de mãos dadas. Hoje esse traço está dilatado, a ponto de produzir imobilismo. Uma vertente radicalizada prevalece, sem qualquer densidade política ou teórica, impulsionada pelo frenesi das redes, dos tuites, dos celulares, da facilidade com que se dissemina ódio.O diálogo não avança, e se não avança não pode haver ação articulada.

Com isso, os governos -- que precisam ser sempre combatidos, fiscalizados, controlados - permanecem inatingíveis, sendo penalizados tão-somente por suas próprias incongruências.

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

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