Muitos brasileiros acompanharam a sessão do STF de ontem, 22, que apreciou o habeas corpus preventivo impetrado pela defesa de Lula. Foi um jogo de cartas marcadas, costurado nos bastidores. O ambiente era tão tenso e conturbado na Corte que se buscou jogar água na fervura, de certa forma "enquadrando" sua presidente, Carmen Lúcia. Com os votos de Rosa Weber e Alexandre de Moraes, até então indefinidos, os adversários do HC, Barroso, Fux, Fachin e a própria Carmen, ficaram isolados. E o habeas corpus solicitado foi "conhecido".
O Tribunal, porém, como se tivesse uma carta na manga, decidiu não apreciar seu mérito, transferindo a decisão para o dia 4 de abril e aprovando liminar que suspende uma eventual prisão de Lula. Deixou tudo em suspenso, criando mais desconfiança e sensação de parcialidade. A justificativa foi que alguns dos ministros tinham viagens agendadas e estavam cansados.
A confusa decisão representou uma derrota para os ministros mais favoráveis ao combate à corrupção.Com eles, perdeu também Raquel Dodge, Procuradora-Geral da República, que defendeu enfaticamente a rejeição de um pedido para evitar a prisão de Lula. Em sua fala, Raquel Dodge disse que a decisão da Corte que em 2016 permitiu a execução da pena após condenação em segunda instância é importante para combater a impunidade. Para ela, a decisão "tem sido considerada por muitos estudiosos como marco importante para fazer cessar a impunidade no país".
O STF exibiu à luz do dia, ostensivamente, sua divisão interna. Prolongou-se o impasse entre os que defendem a regra anteriormente aprovada e aqueles que entendem que detenções só devem ocorrer "depois do trânsito em julgado", o que arrasta os processos para uma longa batalha de recursos e protelações, o que favorece os condenados mais ricos e poderosos.
Parte da opinião pública e alguns movimentos cívicos ficaram claramente frustrados e indignados.
Olhando, porém, as coisas com alguma serenidade, não houve propriamente um fato extraordinário. Mas as coisas pioraram um pouco mais.
Não há por que dar importância excessiva à vitória judicial de Lula e a sua não prisão imediata. Antes de tudo porque foi uma decisão parcial, que na retomada poderá ser alterada. Que Lula circule, faça suas caravanas e adule as massas. É o que ele sempre fez, o que sabe fazer. Esse é o jogo da democracia, ainda que não seja o da Justiça.
O problema é saber o que farão os frustrados e os indignados. Irão à luta, abraçarão o niilismo, convergirão para alguma candidatura mais extremada e que se apresente disposta a "acabar com a pouca vergonha que grassa por aí"? Se as chamas se alastrarem, pior para as postulações do centro democrático e melhor para os extremos.
Ainda mais grave é o que poderá vir como desdobramento institucional. Por um lado, uma ampliação da crise do Judiciário, com um maior choque entre seus órgãos, que discrepam em pontos fundamentais. O STF, em particular, terá de encarar o fato de ter optado por ficar sob suspeita de casuísmo e ligeireza decisória, sem respeito pela construção de uma jurisprudência consistente. Por outro, uma chuva de novos recursos e HC poderá ferir de morte a Lava Jato e aliviar a banda podre da "classe" política. Foi esse, no fundo, a propensão mostrada pela maioria do STF. Nada de prisão em segunda instância, sobretudo quando o "paciente" tiver cacife, grana e bons advogados.
Se nenhuma tormenta bíblica desabar sobre o País, Lula voltará a ser condenado e, se tiver a candidatura confirmada, participará da corrida eleitoral como um cidadão devedor da Justiça, que ele jura respeitar. Lula dirá que deseja ser julgado pelos eleitores, mas o fato é que está desafiando a Justiça e jogando lenha na fogueira que arde no País. Está investindo na radicalização, sem saber se ela poderá favorecê-lo. Paradoxalmente, ao ser parcialmente beneficiado pelo STF, ficou sem a tese de que é "perseguido pela Justiça".
Com tudo isso, o Brasil vai se tornando gradualmente mais estranho e imprevisível.