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Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|O que virá quando e se a poeira baixar?

Nada como um dia após o outro. Quando tudo parecia indicar que o país pegaria fogo assim que o impeachment fosse votado, com a cassação de Dilma, eis que um acordo de bastidores entre o PT e o PMDB mostrou que há mais coisas no ar do que crê a vã filosofia.

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Atualização:

Dilma foi cassada, mas não "inabilitada" politicamente. O velho e bom "jeitinho" entrou em campo, gerando uma decisão controvertida, confusa, justificada por motivos piegas. Mais uma jabuticaba do que algo sério e criterioso. A diferença é que o jeitinho e a jabuticaba não são inocentes, nem ingênuos. E avançaram sob o beneplácito ativo do presidente do STF, que conseguiu, no último segundo, turvar sua imagem de magistrado neutro e imparcial, que conduziu em grande estilo todo o julgamento, com uma manobra típica de politiqueiros e causídicos amadores.

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Em termos gerais, o fato deve significar quase nada, dada a conhecida inapetência de Dilma para a política. Não é razoável achar que amanhã ele disputará um cargo eletivo ou que queira desempenhar função pública de relevo. Não há como descartar isso, claro, mas não é esse o ponto importante. O que chama atenção, e se destaca em termos políticos, é que o acordo demonstra que se buscou criar uma nova "zona de entendimento" em Brasília, cujos efeitos ainda precisarão ser decodificados. Dado o teor das justificativas que o embasaram, o mais provável é que não passe de fogo de palha e não progrida. De qualquer modo, ele criou um fato novo e lançou uma sombra a mais sobre o dia de amanhã. Novas polêmicas virão por aí, e requererão paciência, tirocínio e bom senso, mercadorias em falta na praça. O parafuso da crise deu mais uma volta.

Não foi todo o PMDB que costurou o acordo, mas somente uma parte dele e talvez não a mais importante. Ou seja, o partido exibiu sua divisão. De algum modo, o acordo pode ser interpretado como um esforço para que o PT "perdesse menos" e para que o PMDB de Renan mostrasse os dentes para o PMDB de Temer, que reagiu com grande indignação e sob forte pressão de tucanos e democratas. Feito às escondidas e de modo apressado, o acordo deu um batismo de fogo ao novo governo, que vem à luz com uma base em estado de nervos.

Como o PT terá de lamber suas feridas, ter preservado parte da cabeça de Dilma pode ser um recurso retórico interessante. Mas o acordo foi costurado por senadores externos ao partido (Katia Abreu) e por petistas mais flexíveis (Jorge Viana) e certamente não encontrará ressonância fácil no partido, cuja maioria parece movida pelo clima de confronto e revanche, haja vista a reiteração, por seus senadores e especialmente por Dilma, ao final da sentença, de toda a "narrativa" do golpe, agora condimentada e radicalizada em níveis que contrariam qualquer manobra para aproximar o PT do centro democrático. Dilma simplesmente disse que um "grupo de corruptos assumiu o poder" e que "o golpe é contra o povo e contra a Nação. É misógino. É homofóbico. É racista. É a imposição da cultura da intolerância, do preconceito, da violência". O destempero foi completo e ajudou a dar o tom para os confrontos entre manifestantes "antigolpe" e forças policiais, sobretudo em São Paulo.

No dia seguinte à decisão, Dilma e seus defensores entraram com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF) para anular a condenação no impeachment e determinar que o Senado realize uma nova votação no processo. Todo ele, incluindo a manutenção dos direitos políticos, ou somente a parte que cassa a ex-presidente?

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Não quer dizer que o PT se deixará arrastar por esse posicionamento, que carrega muita emoção de fim de festa, muita retórica e bastante jogo de cena. Dilma se tornou, com o tempo, uma variável problemática dentro do arquipélago petista. Se ficar circulando com a língua afiada e o fel do ressentimento causará não pouco incômodo. Atrapalhará em vez de ajudar. O pragmatismo que regula as ações de um grande partido de massas tenderá a mostrar sua força, até porque há eleições no horizonte. Mas não será preciso muito tempo para que se avalie se o PT atuará em termos de grande política ou se permanecerá na periferia dela. A resposta indicará como o partido fará para iniciar sua reconstrução.

O descontentamento com o acordo foi geral no PSDB, em áreas do PMDB, no PPS e no DEM, que interpretaram o fato como uma concessão indevida que não ajuda ao governo Temer e que poderá ter desdobramentos na desejada cassação de Cunha e na luta contra a corrupção. Tudo indica que entrarão com recurso ao STF, dispondo-se a correr o risco de ver o Supremo suspender todo o processo em nome de uma eventual inconstitucionalidade. O acordo tensionou a relação dos partidos com o governo, criando uma situação de maior flutuação e apoio mais seletivo, que tente manter o governo sob rédea curta. Aumentou a judicialização da política. No final, perderão todos.

O sucesso do novo governo passa por duas coisas difíceis e indigestas.

Por um lado, Temer terá de dizer claramente quais serão seus passos efetivos, tanto no que se refere ao "ajuste" que pretende fazer, quanto no que se refere à sua disposição de abraçar uma agenda de reforma política. Há problemas estruturais graves nas contas públicas e está aberta a discussão sobre como atacá-los. Nenhuma das reformas mencionadas - da Previdência, a da gestão dos gastos públicos, a da recuperação financeira do Estado - é simples. A dosagem que se imprimir a elas é que garantirá sua maior ou menor eficácia e estabelecerá quanto cada uma delas afetará de fato rendas, direitos e benefícios dos trabalhadores.

Por outro lado, tudo dependerá da capacidade que tiverem os políticos de fazer com que a política seja mais forte do que as disputas por poder. Se, amanhã, todos se mostrarem ávidos de votos e deixarem de olhar para o país e o sistema político, então os dias vindouros tenderão a produzir frustrações em cascata. Para todos.

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O futuro também depende de um esforço para que se reduzam excessos e exageros, sobretudo os retóricos, ultrapassando-se a polarização estéril e a compulsão por marcar posições, independentemente dos fatos e do bom senso. O desentendimento se tornou uma forma de exibição, colada ao modo de vida atual. Como a vida continuará, impávido colosso, com suas imperfeições, seus traumas e problemas, seus vilões, vítimas e heróis, está mais do que hora de dar à atuação política um pouco mais de seriedade e serenidade.

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

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