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Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Lista de Janot incendeia Brasília, complica a crise mas abre novas oportunidades democráticas

O tsunami veio com a força que se delineava há meses e que todos esperavam. Mesmo assim, causou alvoroço enorme no mundo político, impondo interrogações e incertezas em escala vigorosa.

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Atualização:

Primeiro de tudo, porque a "lista Janot" cortou a carne na horizontal, distribuindo danos, perdas e suspeitas de forma equânime, equilibrada. Especialmente quanto ao trio de ferro da política nacional - PMDB, PSDB e PT --, os alvos foram escolhidos a dedo, com enorme efeito simbólico. Ministros, ex-presidentes da República, os presidentes das duas casas legislativas, senadores, deputados, ex-ministros, gente graúda, com muitos recursos políticos, passaram a integrar um plantel plural de possíveis investigados e acusados. O número bate na casa das 320 solicitações de providências, devidamente encaminhadas pelo procurador-geral da República ao relator da Lava Jato no STF, ministro Fachin. Ele também pediu que seja retirado o sigilo das investigações.

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É uma mancha na imagem pública de cada um dos relacionados, uma nódoa difícil de ser apagada, sobretudo porque, com as redes ativas, tudo se espalha com a rapidez de um relâmpago e se cola no imaginário.

Desfaz-se a partir de agora um dos mitos recorrentes dos últimos dois anos, o de que a Operação Lava Jato estava orientada seletivamente para promover a caça e a desgraça do PT, Lula antes de todos. De hoje em diante, estão todos abraçados no mesmo poço, tendo de explicar para a opinião pública os caminhos e descaminhos que seguiram em sua atuação política e em seus negócios.

A lista, em segundo lugar, deu ainda mais visibilidade aos podres da atividade política. Emílio Odebrecht, do alto de sua desfaçatez, disse que desde os tempos de seu avô a empresa distribuía dinheiro para políticos e servidores públicos. Naturalizou a situação, com o seu jeito empresário de ser. Só não contou que, antes, o que se distribuía era dinheiro de pinga para alguns candidatos, ao passo que mais recentemente não só o volume cresceu de modo assustador, como passou a ser praticada tendo em vista todos os partidos e políticos. Além disso, não é de se acreditar que o avô de Emílio tivesse organizado na empresa um setor de "operações especiais" para processar "racionalmente" e profissionalizar a corrupção.

Não há quem não saiba, a partir de agora, que a política ficou absurdamente cara, imoral, num país em que parte expressiva da população nem sequer recebe o salário mínimo. A insatisfação com o desempenho dos políticos, que já era enorme, passou agora a ter a companhia de uma desagradável náusea, que se retroalimenta dia após dia, reforça a decepção e cria irritação.

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Janot está certo ao dizer que a corrupção generalizada indica "a triste realidade de uma democracia sob ataque", esmagada pelo abuso do poder econômico.

Sua lista promove duas coisas, que precisam ser bem consideradas.

Uma delas é que assopra a brasa da crise, fazendo com que tudo passe a arder em alta temperatura tanto em Brasília como um todo quanto no Palácio do Planalto em particular. Agendas terão de ser refeitas, cálculos foram para o espaço, o signo da incerteza e da insegurança passou a brilhar no céu do Planalto.

Com que anteparos e operadores poderá contar a partir de agora o governo Temer? Que vozes falarão pelas oposições? Ou será que todos se fingirão de mortos e farão de conta que o barulho não os afeta?

A segunda é um desdobramento da primeira. Se a crise se aprofundou e se complicou, surge uma oportunidade de ouro para se avance em direção à melhoria da democracia e do funcionamento do sistema político. A própria crise incentiva a que se adotem mecanismos que a processem e atenuem. Abre espaços para que se fixe um novo eixo de organização do sistema e uma nova cultura com que praticar a política e lutar por poder e influência.

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Ao se reportar aos procuradores da República, seus colegas de trabalho, Janot destacou que "o trabalho desenvolvido na Lava Jato não tem e jamais poderia ter a finalidade de criminalizar a atividade política". Para ele, muito pelo contrário, seu sucesso, juntamente com as investigações conduzidas pelo MPF, "representa uma oportunidade ímpar de depuração do processo político nacional, ao menos para aqueles que acreditam verdadeiramente que é possível, sim, fazer política sem crime e que a democracia não é um jogo de fraudes, nem instrumento para uso retórico do demagogo, mas um valor essencial à sociedade moderna e uma condição indispensável ao desenvolvimento sustentável do nosso país."

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Ele está certo. Atingiu-se um ponto de inflexão, talvez de ruptura, que distingue um antes e um depois.

Trata-se de projetar um novo parâmetro, que estabeleça o que é certo e errado, separe o joio do trigo, defina as regras a serem seguidas. Tanto as informais quanto sobretudo as regras formais, as legais, passando a limpo as vetustas "jurisprudências", as interpretações maliciosas da Constituição, os esquemas sub-reptícios com que se burla a lei, e assim por diante.

A questão, porém, é complicada. Até em termos lógicos. Se estão todos implicados, quem terá a grandeza e a iniciativa de propor a fixação deste novo parâmetro?

A operação de salvamento da República não poderá ser um "acordão" obsceno que proteja quem quer que seja. Se tentarem fazer isso, os políticos irão se expor à sanha do "ódio social" e pagarão um alto preço. Precisam tentar zerar o jogo, mas de modo digno, com a cabeça erguida e sem maracutaias. Com que estadistas e lideranças se conta para que se forme uma plataforma democrática de recomposição? Quem irá se submeter ao sacrifício, bater no peito e confessar suas culpas, oferecendo ao mesmo tempo a outra face para recomeçar do zero?

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A crise que se agudizou não precisa ser vivida como fim do mundo. Se o instinto de sobrevivência dos políticos conseguir se associar a um espírito democrático digno do nome, podemos estar vislumbrando a chegada de um novo tempo.

É uma leitura otimista, mas não necessariamente romântica ou ingênua.Muitas vezes, é nos momentos em que o fogo se alastra que surgem as melhores oportunidades para se proteger alicerces e fundamentos.

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

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