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Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Intelectuais, gestão e poder político: caso de amor mal resolvido

Intelectuais não costumam se dar bem com cargos políticos e administrativos, que os confrontam com lógicas estranhas a eles.

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Mesmo quando exercidas nos ambientes naturais em que os intelectuais atuam - universidades, escolas, institutos de pesquisa, organizações culturais --, as atividades de gestão não são as que melhor se coadunam com aquilo que sabem e gostam de fazer: escrever, dar aulas, debater, pensar, representar, criar. Não é por acaso que, quando vão para a gestão, os intelectuais se confundem, se angustiam, interrompem pesquisas e ciclos criativos, ficam em busca de algum porto seguro para atracar.

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Alguns se atiram de cabeça no novo campo, descobrem no âmago um talento que não sabiam possuir, uma inclinação inata, e jamais retornam o que eram ou faziam antes: tornam-se gestores para sempre, recompondo a identidade e a inserção institucional. Quando são bons, passam a dar importante contribuição a seus pares. Nenhuma instituição científica, acadêmica ou cultural que se preze pode dispensar a presença ativa de pessoas assim. Outros, ao contrário, se atormentam, metem os pés pelas mãos e depois de um tempo desistem, voltando às origens.

É muito pior quando o intelectual é convidado a ocupar cargos imediatamente políticos, ainda que com dimensão técnica e cultural. O dilema aumenta, até porque a gestão política tem razões próprias, que não se submetem a racionalidades distintas: ela é possessiva, quer seu ocupante por inteiro, como se desejasse asfixiá-lo, domesticá-lo, submetê-lo. As razões político-administrativas colidem com a razão do intelectual e precisam conseguir sobrepujá-la. Exigem que o intelectual vista uma segunda pele, que o incomoda e o deixa sem jeito. Um peixe fora d'água.

O intelectual sabe que, ao ser convidado com pompas e circunstâncias para um cargo político que faz interface com a esfera técnica em que é especialista, corre o risco de estar sendo chamado para compor um cenário. Poderá ser mera cereja no bolo, a ser devidamente exibida para convidados ilustres ou para o dileto público. Sabe, em suma, que será usado, instrumentalizado pelo chefe, pelo líder político, pelo partido que governa, pelos parlamentares e lobistas. Despertará inveja nos que julgam merecer o mesmo tratamento de distinção ou que gostariam de estar no lugar dele, por acharem que poderiam fazer melhor o serviço político que o intelectual não consegue, não sabe ou não quer fazer.

Muitos intelectuais, porém, pensam que vale a pena pagar o preço e correr o risco. E se sua contribuição técnica, afinal, puder fazer a diferença?

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Há casos de intelectuais que transitaram sem dor nem sofrimento para a vida política e partidária. Tornaram-se quadros. Alguns conseguiram até mesmo manter o pique intelectual, ainda que abandonando programas sistemáticos de pesquisa. O caso mais emblemático talvez seja o de Fernando Henrique Cardoso, que deixou o trabalho de sociólogo - no qual dera extraordinária contribuição e era figura-chave - para enveredar pela política e se tornar presidente da República. Há certamente outros, menos emblemáticos. Muitos diplomatas, por exemplo. Bresser-Pereira permaneceu vivo intelectualmente durante os largos períodos em que se dedicou à gestão pública e empresarial. Mas quando Gil foi ministro da Cultura, parou de fazer música. Joaquim Nabuco somente conseguiu realizar a pesquisa com que escreveu Um Estadista do Império quando saiu da política e caiu no ostracismo.

Roberto Mangabeira Unger, catedrático em Harvard e que todos reconhecem como um intelectual de primeira linha, entrou e saiu de governos sem deixar rastros. Sempre foi considerado um estranho no ninho. Transitou pela Secretaria de Assuntos Estratégicos em nome do desejo de contribuir para o país que carrega no peito e no qual é quase um estrangeiro. É um case perfeito do intelectual que não consegue achar seu lugar na mesa dos convidados. Buscou funcionar como uma espécie de provocador permanente, dedicado a forçar as agendas governamentais. Consta que disse certa vez que se dedicaria a "criar tensão dentro do governo e agitação fora dele", algo importante num país que ele vê como sendo uma "grande anarquia criativa". Papel difícil de ser assimilado pela positividade da política prevalecente.

Tudo isso é polêmico e não tenho qualquer pretensão de encerrar uma discussão que precisa seguir aberta. Gente muito mais competente tem examinado o tema ao longo do tempo sem que se chegue a uma conclusão cabal e definitiva. Basta lembrar de Norberto Bobbio e de seu Os intelectuais e o poder (Editora Unesp, 1997).

A questão das relações entre os intelectuais e a política - e, mais ainda, entre os intelectuais e o poder - jamais deixou de estar no centro das atenções. Com o que ficar: com a verdade do conhecimento ou com os fatos do poder, com as convicções ou com as responsabilidades, com as dúvidas "pessimistas" da razão crítica ou com as certezas inquebrantáveis e quase sempre "otimistas" da vontade política? Como combinar e equilibrar os dois tipos de apelos? O que esperar do intelectual que chega ao poder ou dele se aproxima? Que rompa com as exigências da política e do governo ou que se afaste da condição de intelectual?

Bobbio estava convencido de que entre intelectuais e políticos existe um hiato difícil de superar. Acreditava que não há porque nutrir ilusões a respeito da função imediatamente política dos intelectuais, tanto no que diz respeito às suas tomadas de posição quanto a seus projetos de sociedade. A "política da cultura" e a "política dos políticos" deveriam ser mantidas bem separadas, imersas em suas lógicas próprias.

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Bobbio debruçou-se sobre a ética dos intelectuais, sobre o que deveriam ser ou fazer. Acima de tudo, dedicou-se a refutar a ideia de que os intelectuais são uma categoria homogênea, distinta das demais, à qual se possa atribuir a cada um deles a mesma função diante do poder. Ajudou-nos a entender que os intelectuais são seres de carne e osso, sujeitos aos humores do tempo e às fraquezas demasiadamente humanas do humano.

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No Brasil das últimas décadas, a questão esteve sempre na agenda. Muito já discutimos sobre a tensa, complexa e dinâmica relação dos intelectuais com o poder, sobre os dilemas, as correções de rota, as transmutações a que se viram levados quando postos em contato com a política prática e as exigências do poder político e de suas potências diabólicas. Continuaremos a dar atenção ao tema, com certeza.

Pensei nisso tudo ao pensar na demissão de Renato Janine Ribeiro. Ele deve ter sido bem tratado na entrada e na saída, até porque é pessoa educada e cordial com todos. Mas não lhe deram nem chance nem tempo de encontrar seu lugar no vértice superior da administração pública e da política nacional. A contribuição que poderia ter dado dissipou-se no ar, revelando uma das facetas mais cruéis da política que se faz hoje entre nós.

Para sua e nossa sorte, está de volta às lides intelectuais, nas quais se movimenta tão bem.

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

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