Gramsci agonizava no leito quando, em 26 de abril, os aviões nazistas da Legião Condor, aliados do general Franco, bombardearam a pequena cidade basca de Guernica, durante Guerra Civil Espanhola. Era emblemático, ainda que também fosse uma coincidência, que a morte de um libertário militante coincidisse com a retomada e o aprofundamento do terror na Europa.
Oitenta anos depois, Gramsci está mais vivo do que nunca. Suas obras e seu pensamento espalham-se pelo mundo e são discutidas com seriedade, em que pesem alguns reacionários que veem no marxismo gramsciano algo próximo de um veneno destilado para intoxicar corações e mentes. Mas estes são manipuladores e pescadores de águas turvas. Sua tarefa não é esclarecer nem orientar, mas confundir e desorientar.
Gramsci tornou-se não só o autor italiano mais lido no mundo, como o mais poderoso renovador do marxismo, que ele ajudou a soltar dos esquematismos stalinistas e das simplificações economicistas.
Não somente os conceitos, mas a perspectiva teórica de Gramsci (com os aprofundamentos que foram sendo incorporados ao longo dos anos) se mostra indispensável para a compreensão do nosso tempo. Ela indica, em especial, que não há como compreender o mundo capitalista como um fato corriqueiro, a ser abordado com a simplicidade das visões ideológicas, do esquematismo e do ardor da militância. O mundo "grande e terrível" que Gramsci viu a partir da prisão continua aí, provavelmente ainda maior e mais terrível. Não temos o fascismo dos anos 20 e 30, mas a complexidade do capitalismo global desafia toda e qualquer inteligência não-dialética, seja pela volúpia adquirida pelos mercados e pelas desigualdades que deles derivam, seja pelas ameaças que estão sendo feitas a conquistas sociais importantes, seja pela "desorganização" que está sendo gerada no âmbito dos Estados e da política.
É um mundo marcado pela insegurança e pela incerteza, no qual a ação política se mostra sempre mais importante mas não consegue fornecer diretrizes consistentes à dinâmica social e aos cidadãos. Uma época de "revolução passiva", diria Gramsci, na qual os fatos se afirmam sem direcionamento e a participação é intensa mas pouco produtiva.
Nela, tornou-se decisivo buscar consensos e agir para criar na "sociedade civil" áreas de disputa por "hegemonia" (dois dos principais conceitos gramscianos) que representem possibilidades efetivas de democratização, sem ameaças à liberdade e ao pluralismo, que são inerentes à modernidade atual.
No Brasil em particular, Gramsci foi importante para que se atualizasse o repertório dos democratas e da esquerda, ajudando a que se abandonassem certas cláusulas de atuação. Decisiva, aqui, foi a contribuição que o marxismo gramsciano deu à adoção pela esquerda de uma concepção "processual" da reforma social, ou seja, de uma ideia de "revolução socialista" que se faria mediante processos de longo prazo e não de "explosões". Isso impulsionou a passagem de praticamente todas as correntes de esquerda para o campo democrático e a luta eleitoral, no qual se derrotou a ditadura nos anos 1980. Foi assim, também, que ganhou maior sofisticação o pensamento político democrático e das correntes mais avançadas do próprio liberalismo.
Mas a vida é dinâmica, e muito do que se conseguiu nos anos de ouro da luta contra a ditadura sofreu o desgaste do tempo e foi reprocessado pelas novas dinâmicas políticas e sociais. Hoje, a esquerda está em profunda crise e já não exibe com orgulho, como antes, sua adesão à ideia da democracia como valor universal.
A combatividade de Gramsci, que reunia "o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade" e se fazia mediante protagonistas de tipo centauro, que juntavam a astúcia da raposa e a força do leão, não é o que prevalece. Em seu lugar, tomaram assento a indignação, a atitude niilista de ser contra tudo, o exibicionismo narcisista e a repulsa aos políticos e à política.
É uma hora excelente para que se retome Gramsci em chave crítica, extraindo dele alguns elementos que possibilitem a interpelação da realidade com olhos mais realistas e produtivos.