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Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Aos 80 anos de sua morte, Gramsci permanece indispensável para a crítica do mundo atual

No dia 27 de abril de 1937, morreu Antonio Gramsci, após uma agonia iniciada dias antes na clínica romana Quisisana, onde estava recluso. O filósofo comunista morreu como um "homem livre", já que sua pena de detenção havia terminado em 20 de abril, poucos dias antes de ser derrubado por uma hemorragia cerebral que paralisou a metade esquerda de seu corpo e não pôde ser estancada.

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Atualização:

Gramsci agonizava no leito quando, em 26 de abril, os aviões nazistas da Legião Condor, aliados do general Franco, bombardearam a pequena cidade basca de Guernica, durante Guerra Civil Espanhola.  Era emblemático, ainda que também fosse uma coincidência, que a morte de um libertário militante coincidisse com a retomada e o aprofundamento do terror na Europa.

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Oitenta anos depois, Gramsci está mais vivo do que nunca. Suas obras e seu pensamento espalham-se pelo mundo e são discutidas com seriedade, em que pesem alguns reacionários que veem no marxismo gramsciano algo próximo de um veneno destilado para intoxicar corações e mentes. Mas estes são manipuladores e pescadores de águas turvas. Sua tarefa não é esclarecer nem orientar, mas confundir e desorientar.

Gramsci tornou-se não só o autor italiano mais lido no mundo, como o mais poderoso renovador do marxismo, que ele ajudou a soltar dos esquematismos stalinistas e das simplificações economicistas.

Não somente os conceitos, mas a perspectiva teórica de Gramsci (com os aprofundamentos que foram sendo incorporados ao longo dos anos) se mostra indispensável para a compreensão do nosso tempo. Ela indica, em especial, que não há como compreender o mundo capitalista como um fato corriqueiro, a ser abordado com a simplicidade das visões ideológicas, do esquematismo e do ardor da militância. O mundo "grande e terrível" que Gramsci viu a partir da prisão continua aí, provavelmente ainda maior e mais terrível. Não temos o fascismo dos anos 20 e 30, mas a complexidade do capitalismo global desafia toda e qualquer inteligência não-dialética, seja pela volúpia adquirida pelos mercados e pelas desigualdades que deles derivam, seja pelas ameaças que estão sendo feitas a conquistas sociais importantes, seja pela "desorganização" que está sendo gerada no âmbito dos Estados e da política.

É um mundo marcado pela insegurança e pela incerteza, no qual a ação política se mostra sempre mais importante mas não consegue fornecer diretrizes consistentes à dinâmica social e aos cidadãos. Uma época de "revolução passiva", diria Gramsci, na qual os fatos se afirmam sem direcionamento e a participação é intensa mas pouco produtiva.

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Nela, tornou-se decisivo buscar consensos e agir para criar na "sociedade civil" áreas de disputa por "hegemonia" (dois dos principais conceitos gramscianos) que representem possibilidades efetivas de democratização, sem ameaças à liberdade e ao pluralismo, que são inerentes à modernidade atual.

No Brasil em particular, Gramsci foi importante para que se atualizasse o repertório dos democratas e da esquerda, ajudando a que se abandonassem certas cláusulas de atuação. Decisiva, aqui, foi a contribuição que o marxismo gramsciano deu à adoção pela esquerda de uma concepção "processual" da reforma social, ou seja, de uma ideia de "revolução socialista" que se faria mediante processos de longo prazo e não de "explosões". Isso impulsionou a passagem de praticamente todas as correntes de esquerda para o campo democrático e a luta eleitoral, no qual se derrotou a ditadura nos anos 1980. Foi assim, também, que ganhou maior sofisticação o pensamento político democrático e das correntes mais avançadas do próprio liberalismo.

Mas a vida é dinâmica, e muito do que se conseguiu nos anos de ouro da luta contra a ditadura sofreu o desgaste do tempo e foi reprocessado pelas novas dinâmicas políticas e sociais. Hoje, a esquerda está em profunda crise e já não exibe com orgulho, como antes, sua adesão à ideia da democracia como valor universal.

A combatividade de Gramsci, que reunia "o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade" e se fazia mediante protagonistas de tipo centauro, que juntavam a astúcia da raposa e a força do leão, não é o que prevalece. Em seu lugar, tomaram assento a indignação, a atitude niilista de ser contra tudo, o exibicionismo narcisista e a repulsa aos políticos e à política.

É uma hora excelente para que se retome Gramsci em chave crítica, extraindo dele alguns elementos que possibilitem a interpelação da realidade com olhos mais realistas e produtivos.

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Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

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