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Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|"Acordão" e teimosia comprometem reconstrução democrática da política

Três perigos rondam a reconstrução da República democrática no Brasil.

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Atualização:

Um é o "acordão" que tanta gente saúda e alguns tentam viabilizar: um freio de arrumação, pelas costas da população, de modo a parar o carro da Lava Jato e a permitir que os grandes partidos (PT, PDMD e PSDB) consigam respirar. Seria como dizer que tudo não passou de um pesadelo, que a rotina continua na manhã seguinte, malemolente como sempre. De quebra, para não dar o braço a torcer, adotam-se algumas medidas cosméticas (cláusula de barreira e fim das coligações proporcionais, por exemplo), mas suspendem-se os constrangimentos sobre os políticos. Tudo, a rigor, fica mais ou menos como está. Passa-se um pano na trambicagem generalizada, perfuma-se o ambiente e toca-se em frente.Vida que segue.

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Sonhos de consumo dos defensores deste "acordão" são a anistia ao caixa dois, um novo modelo para o financiamento de campanha eleitoral e o relaxamento de prisões preventivas, com as devidas providências para que se maniete Sergio Moro.

O mantra começa a ser repetido em bom som: é preciso "serenar os ânimos", "aceitar o outro", "separar o joio do trigo", "colocar um limite nos abusos" e "salvar a política". Expressões que conseguem muitos consensos entre a classe política, o governo Temer e os grandes partidos. Só faltaria comunicar o esquema para o povo, que, como marido traído, será o último a saber. Para desmanchar a lua de mel entre a população (ou parte expressiva dela) e Moro, o mantra inclui, em lugar de destaque, a ideia de que é preciso impedir que os juízes assumam o controle político do país e "exterminem" os políticos corruptos, pois isso seria ainda pior. Ideia que não tem maior evidência empírica, mas cuja lógica serve para turbinar os políticos, enchê-los de brios e aplacar seus receios mais fantasmagóricos.

A favor deste "acordão" trabalha a constatação de que os políticos e os partidos são essenciais para a democracia, que eles não podem ser sumariamente eliminados, que não há como igualar todos os acusados e os suspeitos como se fizessem parte de uma única quadrilha de malfeitores. É o que dá força e oportunidade ao acordo. Admite-se que o fundamental já foi feito, que não se voltará mais a repisar a senda do pecado, que é hora da conciliação nacional. Só não se explica o suficiente como é que tudo isso acontecerá e que satisfação será dada à população.

Os defensores do "acordão" sabem que correm o sério risco de sofrer um efeito bumerangue. Ao buscarem proteger os políticos em nome do valor da política e da restrição aos excessos da Justiça, podem colidir com a sensibilidade da opinião pública e, desta maneira, produzirem precisamente o que pretendem evitar: deixarão mais livre a pista para a emergência e a progressão de aventureiros à esquerda e à direita, que não perderão a a oportunidade de explorar o sentimento antipolítica da população.

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O que pode fazer com que a manobra fracasse. Até um marciano sabe que hoje há pouquíssimo espaço social e ético-político para "pactos" entre políticos que visem sua própria preservação, por mais que tal tese possa ter abrigo lógico e teórico, por mais que o país esteja a sofrer e a democracia corra riscos.

O segundo perigo é da teimosia, da insistência na ideia de que há um golpe em marcha, dedicado a vampirizar os pobres e os trabalhadores, acabar com todos os direitos e impedir Lula de ser candidato. É um perigo que empurra a sujeira para baixo do tapete e cria ilusões, fazendo de conta que nada de escandaloso aconteceu nos últimos anos, que tudo foi belo, vigoroso e justo, o País viveu um ciclo de "alegria e felicidade", a tal ponto que as "elites brancas", para não perderem os privilégios, se rebelaram contra a esquerda. Uma fábula, meio épica, com Dom Sebastião pronto para ressurgir das cinzas. Nenhuma mea culpa, nenhuma consideração sobre os fatos estruturais da vida, nenhuma reflexão sobre o conceito de esquerda ou de progresso social. Mais do mesmo, em ritmo de vitimização e retórica envelhecida, distante das exigências dilemáticas do presente.

Os que seguem tal trilha nem sequer levam em conta que o mundo mudou, o capitalismo está mais forte e complexo, que é prudente ter um plano de ação consistente, uma agenda de reformas estruturais. Pensam que tudo se arranjará assim que as "elites brancas" forem postas no devido lugar. Sem saber nem querer, intoxicam a população com suas "narrativas" desprovidas de futuro.

O terceiro perigo vem pela extrema-direita, reunindo os protofascistas de carteirinha, os neófitos e os aventureiros. É o perigo que afirma estar o Brasil entregue à esquerda (como sugere Bolsonaro) ou carente de determinação, "projeto" e vigor gerencial, como poderiam dizer Ciro Gomes e João Dória, para citar ao acaso. Aqui, dão-se as mãos os diversos nacionalistas, os autoritários, os gerencialistas, os franco-atiradores, os justiceiros e muitos doidivanas, todos interessados em ganhar a massa decepcionada com os políticos tradicionais e mordida pelos escândalos. Nem todos são de direita ou fazem o jogo da direita, como gosta de pontificar certo pensamento dito "radical". Também não são idênticos entre si, nem em termos políticos, nem em ideologia. Alguns têm mais substância, proposta e estilo, outros são provocadores baratos. O que une esta trupe é a disposição para disputar a hegemonia e persuadir o povo, oferecendo-lhe "ordem", trabalho e "seriedade".

A solução do enigma não está no meio, como reza o ditado. Mas num ponto futuro ainda não claramente delineado, para o encontro do qual os democratas deveriam estar trabalhando com afinco e sem falsas ilusões. Não dá para saber se isso passará por uma Constituinte, mas dá para dizer que exigirá um pacto de novo tipo, que envolva a sociedade e todos aqueles com disposição para garimpar democraticamente o novo e recriar o modo de fazer política no País.

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A reconstrução democrática da política exige reformas, mas também mudança de mentalidade. Quem fará as primeiras, se boa parte dos legisladores está comprometida? E mudança de mentalidade requer tempo, um bem hoje escasso.

Salvemos a política. Nada mais correto. Mas quem encheu o bolso de dinheiro ilícito e sujou as mãos não pode sair de fininho, como se nada tivesse feito ou fosse tudo normal.

E não custa pensar que a morte de uma elite política pode ser sempre a forma que a vida encontra de permitir o nascimento de outra.

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

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