Um quadro, e são centenas deles, me chamou especialmente a atenção. Uma das obras-primas de Francisco de Goya (1746 a 1828). Falo de "Saturno devorando a un hijo" e sua tenebrosa expressão de insanidade. O personagem central parece saltar da tela: sombrio, fúnebre, quase apavorante com um cadáver decapitado nos braços. Fui capturado, e é assim que aprendemos a admirar a arte. E, para além do tempo expressivo de admiração, li com atenção o texto descritivo da obra, numa pequena nota pregada ao seu lado. A história é conhecida: Saturno entende que perderá poder para um de seus filhos e a melhor alternativa que encontra é os comer. Em outrora, mutilara o pai, Urano, com uma foice dada por sua mãe. Pede então à mulher que tragam os rebentos. A tela retrata o olhar atormentado do antropófago em ação, em seu ritual avassalador. Sangue, escuridão e pavor, o quadro está na série de pinturas negras de Goya. Na história que nos contam o "erro" do pai foi não comer Júpiter que o destituiria. Júpiter: o maior de todos.
Além da descrição da tela, existe a interpretação do museu sobre a obra e o que não faltam são análises deste quadro pelo mundo. No Prado, se afirma que a pintura personificaria o sentimento humano do medo de perder o poder: este temor levaria um sujeito a comer os próprios filhos. A ganância o levara a ceifar o pai, enquanto o medo o fez comer os filhos. A arte efetivamente tem esta capacidade de extrapolar e provocar: assertiva e precisa. Como cientista político logo me remeti à Itália de Maquiavel, lembrando os ensinamentos ao Príncipe - chegar e manter-se no poder, os grandes desafios. Lembrei também um primor da literatura atual: Os Bórgias, de Mario Puzo. Qual o limite para se manter o poder?
Saturno representaria os políticos ou os humanos em geral? A política e todo o poder ofertado por ela seriam apenas a extrapolação maior deste sentimento? Quantos "filhos" um político seria capaz de comer - depois de matar o pai -, em nome do poder que imagina ter? O que seria capaz de frear esse ímpeto insano? Max Weber descreveu o parlamento como a representação mais bem acabada da ética da convicção. E se o sentimento de Goya nos sugere que certos aspectos desta "ética" podem ultrapassar os limites mais básicos do que é razoável em nome do poder: qual o limite? Weber diria que podem ser as leis. Mas quem as faz? E sob quais valores? E quem controlaria este ímpeto, sobretudo, dentro dos parlamentos? Olhe para os legislativos brasileiros: quantos servidores tecnicamente preparados e dispostos a dizer "não" aos ímpetos "satúrnicos" de seus membros existem? Que poder têm? Por que há a nítida sensação de que os parlamentares legislam em causa própria? Por que seus gabinetes parecem maiores do que o Legislativo como um todo? Que apego assombroso é esse às regalias, aos privilégios, aos mandatos ilimitados, ao uso dos recursos públicos em nome de interesses e campanhas pessoais? Quantos filhos nossos parlamentares mastigam todos os dias? Que tipo de valor se impõe aos quase 60 mil parlamentares das três esferas de poder no Brasil, lhes dominando a avalanche de apego que fez Saturno agonizar em surto antropofágico? Quem seria Júpiter nesta história?
Numa democracia, o maior de todos é o povo. Mas as respostas a tamanhas provocações podem ser tão assombrosas quanto a tela de Goya: este apego, este ímpeto, pode ser mais natural do que pensamos. E, neste caso, quem controla a natureza? O povo, o nosso Júpiter aqui, não seria uma soma de Saturnos esperando a chance de ascenderem ao poder? O que não faltam são respostas e reflexões filosóficas a tais perguntas. Na mitologia grega, o personagem romano Saturno é Chronos, relacionado ao tempo. Júpiter é Zeus, o Deus maior. Tudo isso que colocamos aqui seria questão de tempo ou desafio divino? Ficam aqui as inquietações e os sentimentos de um sábado à tarde no Museu do Prado. E pensar que um dia afirmei que viajar era um gasto desnecessário.