Reconhecimento terceirizado

Se a nomeação de um ministro da Fazenda de linhagem tucana para executar um programa de ajuste fiscal ganhou o sentido figurado de uma carta aos brasileiros da gestão Dilma Rousseff, , agora o país ganha a versão escrita da presidente para seu compromisso com o modelo ortodoxo que classificara de "rudimentar" quando na Casa Civil do seu antecessor, Lula.

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Por João Bosco Rabello
Atualização:

A exemplo do que ocorrera no anúncio oficial da nomeação de Joaquim Levy na Fazenda, a leitura da carta também teve a ausência ostensiva da presidente da República. Levy fez o próprio anúncio de sua nomeação e revelou a linha que adotará na Pasta. A voz e a imagem da presidente ainda não foram vinculadas às mudanças.

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Ao presidente do BNDES, Luciano Coutinho, coube a leitura da carta da presidente a uma platéia de representantes do mercado financeiro, que ouviu atenta o reconhecimento do governo de fracasso na condução da economia e o comprometimento com a receita que, na campanha, traduzira como tirar a comida a mesa dos pobres brasileiros.

Pela voz do presidente do BNDES, Dilma reconhece que o crescimento tem estado abaixo do esperado, como se o desempenho fiscal já não refletisse isso. Compromete-se com o resgate da economia , a partir de um controle rigoroso da inflação e o fortalecimento das contas públicas.

Acrescenta que a nova equipe econômica vai trabalhar com a meta de estabilizar e reduzir a dívida bruta do setor público em relação ao PIB, que promoverá o ajuste fiscal para adequar o gasto público ao crescimento e aumentará a participação privada nos projetos de infraestrutura, reduzindo os repasses do Tesouro ao BNDES.

Um cidadão distraído que tivesse parado no tempo em 2003 e, como no filme de Woody Allen, "O Dorminhoco", voltasse à vida hoje, pensaria tratar-se do início do primeiro governo do PT, em que Lula anunciou o compromisso com a preservação dos fundamentos do modelo econômico herdado do governo Fernando Henrique Cardoso.

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O fez para garantir uma estabilidade que o temor geral que sua eleição gerava no mercado, preocupado com a possibilidade de ruptura com o Plano Real e o ingresso do país em um período de experimentalismos que pusesse a perder as conquistas econômicas.

Entre elas, a obtenção do grau de investimento pelo país, agora em risco, que Dilma tenta manter com a sua versão da carta aos brasileiros. Entre um momento e outro - da primeira posse de Lula à segunda de sua afilhada, foram-se 12 anos com quatro representando um retrocesso cuja gravidade se mede pela percepção de que se começa tudo outra vez.

Agora, ditado pela emergência de movimentos destinados a evitar a perda do grau de investimento alcançado em 2008 - 14 anos depois do Plano Real, como efeito de sua permanência.

Uma nova etapa de aprendizado a que os governos do PT submeteram o país que, afora o mérito de ampliação dos programas sociais, se traduziu pela desorganização política e administrativa e pela implantação de um ambiente de corrupção sistêmica que supunha-se representado e encerrado pelo mensalão.

No primeiro caso, se sobressaem os sete anos passados desde a conquista pelo Brasil de país sede da Copa do Mundo e a sua realização, em que o improviso foi a tônica e quando a população percebeu que o padrão Fifa cumprido pelo país à força de contrato era perfeitamente possível mas eternamente negado pelo Estado, o coletor implacável de impostos.

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É essa linha no tempo, perfeitamente identificada pelo mercado e pelos investidores que ainda gera a dúvida sobre a autonomia do novo ministro da Fazenda para levar adiante a missão confiada pela presidente da República. Uma dúvida compreensível, mas que desconsidera a falta de opção da presidente: tivesse alternativa que não a de se dobrar a um receituário antagônico ao que demonstrou acreditar em todo o seu primeiro mandato, e ela sequer nomearia Levy.

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Em recente programa de debate na GloboNews, esse tema foi abordado pelo ex-ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega e o economista Raul Veloso - o primeiro ainda desconfiado quanto ao êxito de Levy por uma eventual recaída da presidente da Repúbica; o segundo, considerando que a discussão sequer está posta, na medida em que a Dilma não restou outro caminho senão o da capitulação diante da realidade negativa da economia.

A carta lida ontem por Coutinho, portanto, parece ter sido ditada pela constatação do próprio governo de que precisava reforçar a opção ortodoxa representada pela nomeação de Levy que, por si só, parece ainda insuficiente para espantar os receios dos investidores.

Principalmente pelo formato do anúncio da nova equipe econômica, feito por nota oficial, e da primeira entrevista dos novos ministros, sem a presença de Dilma para apresentá-los à população. A carta mantém esse formato de mensagem presidencial, mas como meio de manter a presidente fora de cena.

Por estranho, a presidente fica devendo uma fala própria em que assuma o novo rumo anunciado para seu governo por terceiros, muito embora credenciados porta-vozes. Do contrário, fica o cenário de uma mudança constrangida, não vocalizada pela protagonista do enredo, como se dela - ou do modelo que norteou seu primeiro mandato - se envergonhasse.

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