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Crônicas sobre política municipal. Cultura brasileira local sob olhar provocativo | Colaboradores: Eder Brito, Camila Tuchlinski, Marcos Silveira e Patricia Tavares.

O que vale mais: R$ 100 milhões ou 71 vidas?

Dias desse estive no Palácio do Governo do Estado de São Paulo para uma conversa com um professor de um curso que coordeno. Aproveitamos a visita para acompanhar uma reunião aberta, repleta de jornalistas, em que o governador apresentava dados de um programa de redução de acidentes e mortalidade no trânsito desenvolvido em municípios. O apoio da iniciativa privada é fundamental nesse caso e os resultados começam a aparecer. Não se trata de algo apenas paulista, e em outros estados isso também tem se mostrado interessante. Aos envolvidos, e não são poucos, os cumprimentos e a esperança de que ainda mais vidas sejam salvas.

Por Humberto Dantas
Atualização:

A introdução serviu apenas para mostrar onde eu estava. Agora vem o que me incomodou muito na reunião. Dentre diversos números, a fala tranquila do governador se alterou um pouco para destacar dois deles. No primeiro disse que R$ 100 milhões seriam investidos em melhorias das condições das estradas, sobretudo atendendo à demanda por duplicação. No segundo afirmou que na fase inicial, implantada em alguns poucos municípios paulistas, o programa já havia assistido a estimativas de que foi capaz de poupar 71 vidas. Isso significa, em pleno período de absoluta tristeza e solidariedade com as vítimas do avião que levava jornalistas, dirigentes esportivos e atletas da Chapecoense para a Colômbia que uma ação governamental em fase inicial poupou o mesmo número de vítimas pelas quais choramos: 71. É claro que as situações são distintas, mas em resumo estamos falando de uma mesma lógica de tragédia: vidas são perdidas barbaramente em acidentes, e nosso objetivo maior é criar condições de segurança para que isso seja minimizado. Perfeito! A vida em primeiro lugar e todos os esforços para poupá-las. Inclusive, no evento, o governador apontou que se todos os esforços tivessem poupado uma vida já valeriam a pena. Claro que aqui tem um sensacionalismo discursivo, mas em tese a ideia faz sentido.

Pois bem. Vamos destacar novamente os dois instantes em que a voz do político se alterou levemente para dar ênfase às suas ideias - o que no caso de alguns políticos é o código para ser aplaudido. Fiquemos apenas com os números: R$ 100 milhões e 71 vidas. Ao ouvirem o primeiro dado o público presente fez ecoar no salão uma salva de palmas, um caloroso aplauso que interrompeu a fala do governador e lhe fez ofertar aquele tradicional sorriso de orgulho. O segundo número, lançado com a mesma energia do primeiro, passou em brancas nuvens. Nada de aplausos, discurso que segue, e assim foi. Palmas novamente apenas na conclusão da exposição. Incomodado com aquilo me pergunto: R$ 100 milhões, que é dinheiro incapaz de promover obras expressivas e gigantes é algo mais importante do que 71 vidas? Pessoas que ali estavam, ao meu lado, tiveram a mesma sensação. Pessoas que ali estavam, distantes de mim, fizeram o mesmo comentário num café vespertino em outro ponto da cidade. Quem aplaudiu? Quem começou? Por que não o fez no segundo dado? Os milhões assustam pelo falso vulto de gigantismo e o total de vidas não é capaz de sensibilizar? Será que dezenas de presentes foram racionais a ponto de lembrar que o valor é 0,05% do orçamento do estado e as vidas "apenas" 0,0002% da população paulista? Duvido. A história parece ser outra, e se tudo for loucura e/ou coincidência peço desculpas, mas fico me perguntando em que mundo vivemos e em que realidade desejamos viver.

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