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Crônicas sobre política municipal. Cultura brasileira local sob olhar provocativo | Colaboradores: Eder Brito, Camila Tuchlinski, Marcos Silveira e Patricia Tavares.

Intolerância em Ariquemes: valores, família e Estado

Nós podemos escolher em que mundo viver. No primeiro as características dos indivíduos podem até lhe incomodar de alguma forma, mas você opta pela tolerância, por vencer seus preconceitos e medos, por lidar com as diferenças e tratar com naturalidade quem não é, simplesmente, igual a você. Por sinal: existe alguém igual a você? Nem meus colegas de Estadão, os jovens e queridos gêmeos da educação política, são. Olha só!

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Por Humberto Dantas
Atualização:

No segundo você pode alimentar as diferenças levando-as ao limite da intolerância, do conflito, do incômodo agressivo. Ser diferente de você, e principalmente do grupinho ao qual pertence e dentro do qual se sente forte e à vontade, lhe oferta o direito de ser agressivo. A intensidade dessa agressividade pode variar. De posturas, frases e negações às atrocidades físicas que machucam a alma e o corpo. Sob essa opção é bom que você também esteja preparado para ser minoria, para ser "o diferente odiado". Isso representa dizer: quem bate corre o risco de apanhar. Mas precisamos que seja assim? Devemos mesmo chegar a tal ponto?

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A teoria da democracia já nos ensinou sobre isso. Para nos afastarmos do risco de uma ditadura abrimos mão de um mundo que seja singularmente nosso desde que todos façam rigorosamente o mesmo. Chegamos assim ao nosso mundo, e não ao seu, tampouco ao meu. A versão plural, claro, precisa ter limites também, para que maiorias não achatem minorias. A partir disso estaríamos acordados: e viveríamos em paz. Simples? Nada disso!

Quem deve ser o responsável por esses valores? Para muitos as famílias. Mas a primeira pergunta é: todos têm famílias? E a segunda é: todas elas estão preparadas para a disseminação consciente e razoável de tais valores? Sugiro que não, e o ideal é que o Estado seja o porta-voz formal da disseminação desses valores essenciais de convivência, reconhecimento mútuo e tolerância. Pois bem. Mas e quando os políticos são os símbolos maiores da intolerância contra as pessoas que possuem características diferentes das suas?

Em Ariquemes, interior de Rondônia, vereadores foram ao prefeito e exigiram que páginas de livros didáticos enviados pelo MEC fossem suprimidas do material sempre que tratassem de questões de gênero e uso de preservativos. E ele acatou. Em reportagem do G1, o vereador Amelec da Costa (PSDB) - não coloque um "a" no fim do nome para não demonstrar intolerância ou cometer o que estamos combatendo aqui - afirmou que cabe às famílias tratarem de tais questões. E que a ESCOLHA da sexualidade é do sujeito no futuro, sem que o Estado o estimule a fazer certas opções por meio de livros didáticos. Parado no tempo, o edil ainda não entendeu que sexualidade é característica e não opção - ou seja, o homossexual que "escolhe" não ser homossexual apenas está "optando" por escamotear uma característica que lhe é natural, o que provavelmente o destinará à infelicidade e às frustrações associadas ao medo e à violência de nossos tempos.

Estacionado em seu preconceito e no conservadorismo que graça em parcelas de nossa população, o vereador vai adiante e "acredita" sem qualquer pesquisa para ampará-lo que 90% da população local é favorável à ideia. Perfeitamente. Eu partiria dessa hipótese também, sobretudo numa realidade em que o ensino religioso está presente nas escolas, algo que efetiva, definitiva e exclusivamente deveria ser tratado na família e nas igrejas. Perceba: o estado troca o ensino da característica pela disseminação da opção. Ensina a opção religiosa, mas ataca e evita a característica da homossexualidade. Será que é assim que devemos educar nossos filhos? Impondo-lhes a opção divina com a qual desejam se associar ou não, e lhes escondendo o debate tolerante sobre as características dos indivíduos sobre as quais não existem escolhas?

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Para completar, olhemos os dados oficiais do Datasus para verificar "a importância" de retirar os preservativos do debate escolar. Nos documentos oficiais me deparo novamente com o "desafio de nos orgulharmos" de parar no tempo. Ariquemes não é diferente de muitas cidades brasileiras, e por lá o Ministério da Saúde, a despeito de uma estatística que demanda atualização urgente, apontou que quase 18% das causas de internações de jovens de 10 a 14 anos ocorriam por motivo de PARTO em 2009. Na faixa seguinte, de 15 a 19 anos, esse percentual sobe para alarmantes 71%. Prefiro não supor que alguns políticos locais, e "uns 90% da sociedade", reforçariam a ideia de que "mulher é mesmo pra procriar, e o mais cedo possível". É isso mesmo que desejamos pra nossa sociedade? Tirar o preservativo e a sexualidade do livro didático é, realmente, atitude de quem vive em outro mundo.

 

E olha que nem vou voltar ao começo desse texto pra tentar desvendar se vivemos no primeiro ou no segundo mundo descritos, e tampouco vou discutir o papel do Estado novamente. Deixo apenas um trecho da reportagem citada: "conforme o Poder Executivo, todas as páginas de livros didáticos que falem ou mostrem diversidade sexual, casamento homossexual ou uso de preservativos serão suprimidas". Pode chorar.

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