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Compaixão em disputa: sobre a política das emoções em torno do luto de Lula

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Por Redação
Atualização:

Daniel Pereira de Andrade, Doutor em Sociologia pela USP e professor do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração (FSJ) da FGV-EAESP.

 

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O falecimento de Dona Marisa Letícia, mulher de Lula, na semana passada deu ocasião a um novo e perigoso episódio da disputa política brasileira. Disputa que se trava em larga medida em torno de uma política das emoções para moldar e mobilizar a opinião pública. Nessa contenda, não são os argumentos racionais, as informações exatas e a reflexão fria que contam, mas a retórica, a adjetivação, a estereotipização e a difusão de boatos. Estas são armas capazes de despertar e canalizar os afetos, direcionar pré-reflexivamente as vontades, obter engajamentos plenos e acríticos e promover ações impulsivas.

Essa forma de política das emoções não é uma novidade histórica. Já nos séculos XVII e XVIII, pensadores europeus acreditavam que o verdadeiro motor da conduta humana não era a razão, tida como impotente, mas as paixões derivadas da nossa natureza. Desde então, governantes dedicaram-se a gerir as emoções, estabelecendo regras sobre como e o que sentir e manifestar, regras que são inseparáveis de um ideal de humanidade e de ordem social. Como essas regras não são consagradas apenas como ideais abstratos, mas colocadas em práticas por uma série de discursos morais, técnicas e dispositivos de controle social, toda sociedade os incorpora em maior ou menor grau. O que não quer dizer que todas as regras emocionais sejam inteiramente consensuais, pois, na medida em que toda definição de norma social é uma atividade política, ela está sempre aberta à controvérsia.

O falecimento de Dona Marisa remeteu a algumas das regras emocionais mais básicas do Ocidente Cristão: o luto e a compaixão pelos que morrem e pelos que sofrem com a dor da perda. Como, no entanto, não se tratava da morte de uma pessoa anônima ou de alguém da esfera pessoal, mas de uma mulher cuja história de vida se cruza com a da personalidade política central das disputas recentes, essa regra emocional foi quase que imediatamente politizada, transformando o dever ou não de compaixão em calorosa polêmica.

Se o abraço de Fernando Henrique Cardoso a Lula, retribuindo o apoio que havia recebido na ocasião do falecimento de Ruth Cardoso, sinalizou inicialmente que a regra emocional da compaixão deveria se colocar acima das diferenças políticas, essa disposição a suspender a contenda não durou nem algumas horas. De fato, o reconhecimento de uma dimensão de solidariedade humana trazia o risco para alguns dos adversários mais implacáveis de Lula da empatia com ele se alastrar pela população. Como as emoções são contagiosas, a população, ao se colocar no lugar de Lula, podia experimentar uma perspectiva afetiva capaz de se estender para a política. Não é nenhuma novidade que, para certas correntes políticas, é interessante alimentar a polarização como forma de obter adeptos e de levar sua plataforma ideológica adiante. Muitas pessoas acabam por apoiar grupos ou partidos não pelas suas propostas ou pela confiança em suas intenções, mas porque eles são adversários de outros grupos que essas pessoas rejeitam. Precisamente por isso, é estratégico para esses grupos suspender empatias, acirrar ódios e estereotipar pejorativamente adversários, no limite desumanizando-os.

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Foi assim que choveram nas redes sociais manifestações de insensibilidade e explicações de por que não se deveria ter qualquer compaixão por Marisa ou por Lula. Algo que logo foi acompanhado pela disseminação de falsos boatos a respeito de uma encenação de doença ou de morte para fugir de uma possível prisão pela polícia federal. Cortar os canais de empatia com o sofrimento de Lula, mesmo que às custas de romper com uma das regras emocionais mais consagradas pela moral cristã ocidental, eis um exemplo de como as emoções podem ser politizadas e como são historicamente situadas.

Mas a disputa política em torno da emoção não parou por aí e nem se deteve em um único lado. Simpatizantes de Lula mobilizaram a indignação contra o desrespeito à regra emocional como forma de acusar adversários, sensibilizar a população e mobilizar a militância. Note-se que não há aqui qualquer acusação de falso moralismo ou de cinismo, pois é absolutamente provável que essas pessoas que promoveram a indignação tenham a sentido verdadeiramente. Mas isso não elimina o fato de que essa indignação também componha a política das emoções que atravessa a história recente brasileira. A política vinculou-se assim ao discurso moral, que encontrou nos médicos que vazaram o exame e desejaram a morte de Dona Marisa seus alvos principais. O que também se deu com exageros passionais, como, por exemplo, na publicação do endereço residencial dos médicos, em uma incitação implícita a se fazer justiça por conta própria.

E foi a própria manifestação de indignação entre os simpatizantes de Lula que os levou a cair em uma cilada, dando munição para o outro lado reverter os argumentos morais. A visita da comitiva presidencial liderada por Michel Temer poderia ter tido o mesmo sentido que a de Fernando Henrique (elogiada pelos dois lados do espectro político). Mas, ao invés de levar ao arrefecimento dos ânimos em torno de uma solidariedade acima da política, ela acabou por lançar mais lenha na fogueira. É possível que não tenha sido acidental a escolha da comitiva presidencial de entrar pela porta da frente do hospital, onde estavam reunidos todos os simpatizantes de Lula. Como se sabe, havia uma porta lateral que garantia um acesso discreto, entrada que foi a opção de Fernando Henrique, mas que, mesmo sendo a escolha mais óbvia, não foi a da comitiva. O resultado foi o esperado: a comitiva foi ofendida por seus adversários políticos em um momento de calorosa indignação. Simultaneamente, um boato foi lançado por um jornalista da grande imprensa sobre um possível diálogo de articulação política entre Lula e Temer, que colocava Lula como falseador do luto e traidor da militância petista. Foi então fornecida a munição para os antipetistas inverterem a retórica do desrespeito, com a acusação de hipocrisia e uso político da morte por parte de Lula e seus simpatizantes. Acusação que era um argumento emocional para suspender de vez qualquer empatia com os petistas.

O episódio final da disputa foi o velório. Neste momento máximo de comoção, com amigos, familiares e a população prestando seus pêsames, foi o discurso fúnebre de Lula que se tornou objeto de polêmica. De um lado, inimigos o denunciaram mais uma vez por fazer uso político da morte, o que justificaria o próprio desrespeito de que eram acusados, já que, segundo eles, aquele que havia sido mais desrespeitoso, em última instância, teria sido ele mesmo, Lula. Do outro lado, defensores argumentavam nas redes que ninguém tinha o direito de julgar a dor de Lula e que ele poderia expressá-la como bem entendesse. Afinal, tendo sido um sindicalista e político a vida toda, era mais do que natural que se sentisse e se expressasse como um, ainda mais depois da perseguição jurídico-política que ele e sua mulher teriam sofrido e que ele continuava a sofrer no próprio momento em que enterrava a sua companheira de vida. E aqui um boato também foi mobilizado: o de que o juiz Sérgio Moro teria emitido no dia do velório uma intimação para Lula depor.

A contenda política convertia-se assim em uma disputa em torno de uma regra emocional e da mobilização das emoções do público: existia ou não o dever moral de se ter compaixão por Lula e, de modo ainda mais radical, por Marisa? Quem estava realmente cumprindo ou descumprindo essa obrigação? Quem tinha legitimidade para se indignar? Tratava-se de mobilizar argumentos retóricos e boatos em torno desse dever ou falta dele para potencializar ou bloquear a emoção da compaixão de modo a se produzir efeitos políticos.

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A polarização política brasileira adentrou assim um perigoso terreno: o do tabu das regras emocionais relacionadas à morte (luto e compaixão). Terreno perigoso não apenas porque atinge um dos dogmas morais centrais da nossa sociedade. Mas também porque, ao tocar em assunto tão delicado, tem o potencial de aumentar a indignação moral e a estereotipização do adversário político, elevando a desumanização e o ressentimento a patamares que ainda não tinham sido alcançados. A recusa de compaixão no momento da morte de familiares é indício grave de que não se reconhece no outro a humanidade nem em casos limites, projetando nele apenas o mal. E, inversamente, a manifestação de insensibilidade humana permite ao outro lado desumanizar aquele próprio que primeiro desumanizou, pois a insensibilidade é sinal de que lá não pode existir nada de bom. Quando reciprocamente se vê no outro lado apenas a malignidade, abre-se espaço para um conflito sem solução de trégua. E quando boatos e estereótipos substituem a verdade para alimentar o ódio, desfaz-se até mesmo a possibilidade de esclarecimento para caminhar na direção do entendimento. Por isso, nessa política das emoções, talvez seja melhor para nossa sociedade democrática ficar com o abraço entre FHC e Lula, comprovado por várias testemunhas e registros fotográficos.

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