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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Bolsonaro é mais do que o anti-Lula

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Por Redação
Atualização:

Eduardo José Grin, cientista político e professor do Departamento de Gestão Pública da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EAESP FGV).

 

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Após a condenação do ex-presidente Lula pelo TRF-4 as análises sobre o pleito de outubro convergem para afirmar que o tabuleiro eleitoral mudou. Afinal de contas, a improvável candidatura petista carrega um espólio de cerca 40 milhões votos. No caso de Bolsonaro, sem Lula, diz-se que perderia fôlego, já que a polarização com um candidato mais à esquerda serve para alimentar seu discurso como alternativa para setores que são, acima de tudo, anti-petistas. Mas é preciso analisar essa afirmação com mais cuidado, pois há outros fatores que estimulam o (re) surgimento de um candidato que representa uma proposta regressiva para a democracia.

Para um país que ainda luta por curar as chagas de uma longa ditadura militar não deixa de ser traumático observar o apoio social a um candidato a presidente que defende a tortura! Bolsonaro é muito mais que um anti-Lula e há outras razões que explicam sua inserção eleitoral nada desprezível. Também seria incompleta uma resposta que sua candidatura é um efeito da crise de representação, da corrupção e da exploração populista de temas como a segurança pública. Se bem que esses sejam temas caros à democracia e para a vida cotidiana dos cidadãos, não são novos para os brasileiros, ainda que possam ter atingido um patamar maior intolerância social.

É preciso ampliar o horizonte de análise para situar essa candidatura, pois é muito provável que não se trate de um populista surfando na onda da crise moral, política e social do país. É possível que Bolsonaro expresse a entrada em cena de uma nova visão com a qual a democracia brasileira tenha que se habituar a conviver daqui para frente. É cedo para afirmar que esse conservadorismo, em muitos sentidos pré-udenista, logrará manter seus níveis de preferência indicados nas pesquisas de opinião. Mas é muito provável que a política nacional passe a admitir uma força política de direita organizada o suficiente para expressar suas posições e receber apoios.

Esta perspectiva assustadora, se serve de consolo, não é um algo que assombra apenas o Brasil. Em artigo publicados no Journal of Democracy, em 2016, Roberto Stefan e Yascha Mounk, valendo-se do World Values Survey (2010-2014), mostram que o suporte à democracia vem declinando no Estados Unidos e no continente europeu. A rejeição a valores liberais como a proteção a direitos de minorias religiosas e étnicas e liberdades civis vem aumentando, sobretudo entre os mais jovens. Para os millenials americanos, nascidos após 1980, mais de 25% acham pouco importantes eleições livres para escolher representantes, enquanto esses são 13% na Europa.

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Nos Estados Unidos, apenas 30% desse segmento julga relevante viver em um país democrático. A redução do compromisso dos eleitores mais jovens com a democracia também se evidencia pela queda de seu engajamento político, sobretudo em partidos. Para piorar: esse comportamento tem se traduzido em apatia e desinteresse pela política e descrença na democracia. A participação declina mesmo em atividades cívicas e não identificadas com meios formais de atuação política em partidos.

Nas últimas três décadas, subiu de um entre dezesseis para um em cada seis eleitores que dizem ser bom ou muito bom o exército governar. Tendência de aumento para tal também tem crescido em insuspeitas democracias como Alemanha, Suécia e Reino Unido. Não menos importante: o World Values Survey mostra que, nos mais de noventa países da pesquisa, 44% dos entrevistados apoia um líder forte que não precise se preocupar com eleições e o parlamento. Essa é a escolha de 34% nos Estados Unidos, de 40% na Espanha e 21% na Alemanha que já conheceu o nazismo, e são mais expressivas entre jovens com idade ao redor de vinte anos. No Brasil, 64% dos respondentes concorda com essa afirmação.

Entre os mais ricos, segundo o World Values Survey, nos Estados Unidos, 16% apoiavam esse tipo de governo, em comparação com 33% de aceitação na América Latina. Os mais jovens e mais ricos são adeptos de rotas de governo mais distantes da democracia e entre esses 33% concordam que o exército deva governar no Estados Unidos e 17% são de opinião similar na Europa. Como hipótese, entre os mais ricos têm crescido a aversão a políticas redistributivas que, ao longo do século XX, caracterizaram, em geral, as democracias. E isso diz muito sobre o Brasil e sua histórica dificuldade para enfrentar sua renitente desigualdade social junto a muitos setores do andar de cima.

O êxito eleitoral de Donald Trump e suas políticas abertamente antidemocráticas e a crescente força eleitoral de partidos de direita na Europa podem ser compreendidos pela queda no suporte da sociedade à democracia e seus valores básicos. Se essas forças políticas ainda não são os partidos anti-sistema que comenta Giovanni Sartori, a distância ente o conceito e a realidade diminuiu muito. O crescimento do populismo de direita e sua investida contra a imprensa livre e o Poder Judiciário, xenofobia exacerbada e um nacionalismo retrógrado expressam o desapreço das instituições e do jogo democrático. Como lembra Paul Howe, partidos populistas prometem ação decisiva no interesse do povo, às custas de contornar princípios democráticos, e eleitores descontentes aprovam.

Na América Latina, conforme o Latinobarómetro de 2015, a realidade também é pouco alvissareira. Para 19% tanto faz se um governo é democrático ou não e para 16%, em certas circunstâncias, um governo autoritário é mais indicado. Não à toa, para 20% a democracia não é a melhor forma de governo, números que são similares em solo nacional. Cerca de 70% dos eleitores não se veem representados no parlamento, 64% pelos governos e quase 80% desconfiam dos partidos políticos, sendo que no Brasil esses percentuais são ainda maiores. A desconfiança no congresso beira os 70%, é de 65% em relação aos governos, comparativamente à confiança de 44% no exército. Outros 33% descreem que votar mudará algo em suas vidas. A mesma pesquisa, na edição de 2013, mostrava que, para 64%, faz falta um líder decidido para resolver problemas (chega a 77% de aceitação no Brasil). Para 24%, a democracia não precisa do parlamento, assim como para 19% as forças armadas deveriam governar (28% por aqui).

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É nesse contexto de desalento e perda de suporte social à democracia que viceja a candidatura de Bolsonaro. O descrédito sobre esse tipo de regime político, dada suas muitas promessas não cumpridas, conforme Bobbio, serve para alimentar o crescimento do ceticismo mesclado com autoritarismo. Seria piada de mau gosto dizer que dessa vez o Brasil pode estar se alinhando com as tendências mais recentes na política internacional. Logo nós que sempre reclamamos que nossa democracia não era como a dos ditos países avançados. Pois aí estamos nós: Bolsonaro nos representa nesse alinhamento com a desafeição democrática que vem ocorrendo em vários países.

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A conexão perversa entre a rejeição crescente à democracia mundo afora e as mazelas de nosso sistema político, que não são poucas, fazem do asco à política que cresce na sociedade o fermento básico do apoio a essa candidatura. Certo ou errado, induzida ou não por atores interessados nessa agenda, é fato que, cada vez mais, a sociedade descrê na política como forma de mediar conflitos e resolver seus problemas. Nada muito diferente do fenômeno em curso nos Estados Unidos e na Europa. Ademais, 60% dos eleitores de Bolsonaro têm entre 16 e 34 anos, a juventude de classe média urbana, sendo, 30% com menos de 24 anos, o mesmo perfil de eleitor que apoia governos e líderes autoritários nas democracias americana e em vários países europeus.

Alguém poderá dizer que esse público não vivenciou a ditadura militar e desconhece o custo para restabelecer a democracia no Brasil. Mas talvez tenhamos que aceitar que em 2018 seja um Jair a representar o desencanto com a democracia e que, a partir daí, sejam outros João e Maria os porta-vozes dessa visão de mundo na política brasileira. Em definitivo, Bolsonaro é mais do que o anti-Lula, e isso deveria preocupar a democracia em nosso país.

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