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Uma rede de amor

Casal de mulheres teve filha com amigo em um dos primeiros casos de multiparentalidade da Justiça do Rio Grande do Sul

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Por Redação
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Foto ilustrativa: Chokingxl/Free Images Foto: Estadão

Por Julia Affonso

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No Réveillon de 2013 para 2014, Laura, Clara e José (todos os nomes são fictícios) acharam que estava na hora de terem um filho juntos. O plano estava sendo conversado havia dois anos. Laura e Clara são casadas há 7 anos e amigas de José. Em outubro do ano passado, nasceu Beatriz.

"Nossa filha tem três pais, seis avós, três bisavós e sete tios", conta José. "Quando eu a vi pela primeira vez, chorei muito de emoção, de alívio, de alegria. A gente desmorona. É muito legal como por mais preparado e organizado emocionalmente que a gente seja, quando as emoções são grandes demais, elas nos surpreendem. Essa me surpreendeu e diariamente sou surpreendido pela carga de carinho e de amor que a gente está desenvolvendo com a nossa filha. A rede de amor que a gente criou foi fantástica."

O bebê, hoje com 7 meses, é um dos primeiros casos de multiparentalidade do Rio Grande do Sul. Os pais pediram o registro na Justiça e ganharam, por unanimidade, em 2ª instância, em fevereiro deste ano.

"A gente chegou a fazer uma avaliação numa clínica de fertilidade, para ver como é que seria uma fertilização in vitro. Para nós, era muito complicada a ideia de iniciar uma família sem a figura do pai", conta Laura.

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A história de José e Clara começou há 25 anos. Eles se conheceram em 1990, durante a adolescência, e se tornaram grandes amigos. Já o encontro entre ele e Laura se deu após ela e Clara se casarem há sete anos.

A convivência entre os três, eles contam, sempre foi muito grande. No início de 2012, o casal começou a conversar sobre o bebê que queriam ter. Meses depois, José se apresentou às duas como o pai que elas procuravam.

"Quando eu ouvi a história que elas estavam pensando em ter filho e que a primeira opção era um doador anônimo, eu pensei: eu vou ser esse pai. Muito antes de a gente conversar de fato, eu já tinha certo diante de mim que elas seriam as mães ideais para esse filho, para esse projeto conjunto", lembra José.

Após decidir que teriam um filho juntos, os três resolveram fazer terapia, antes da concepção do bebê, por inseminação. A ideia, conta Laura, ajudou a 'nutrir esse desejo com tudo que ele tem de difícil e de especial'.

As idas ao psicólogo duraram 1 ano e meio. Lá, discutiram a educação que iriam dar à criança, as dificuldades e facilidades que poderiam ter pela frente e questões sobre os papéis maternal e paternal de cada um.

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"Tudo isso nós conversamos e foi muito legal. A gente já pôde antecipar vários cenários e que a gente trabalhou juntos. Isso fez com que fosse mais amadurecida, mais clara e mais consequente a nossa decisão de ter um filho juntos", diz José.

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Durante a gravidez, os três foram juntos a todas as ultrassonografias e consultas médicas. Como parte do planejado na terapia, criaram uma conta bancária, onde dividem os gastos com a filha, e organizaram a vida para que os três pudessem estar sempre juntos com o bebê. José, que mora próximo a Laura e Clara, tem um quarto na casa do casal e vice-versa.

"A gente sempre coloca nossa filha em primeiro lugar. Nossos horários, nossas atividades, a gente sempre vai pensar a rotina, o ritmo mais adequado para ela. Em cada momento, ela tem demandas diferentes. A gente tem de estar atentos a isso", explica José.

Obstáculos. Em 1ª instância, o registro de Beatriz não foi aprovado pela Justiça. O juiz responsável pela decisão afirmou que havia impossibilidade jurídica do pedido.

Ao analisar o caso, o juiz de Direito José Pedro de Oliveira Eckert ressaltou que no Direito das Famílias, a ausência de lei 'para regência de novos - e cada vez mais ocorrentes - fatos sociais decorrentes das instituições familiares', não é indicador necessário de impossibilidade jurídica do pedido.

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"Destaco que não há no ordenamento jurídico regra que proíba a inserção de duas mães e um pai no registro de nascimento de uma pessoa natural", afirmou o magistrado em sua decisão.

"No tocante à filha recém-nascida, não se cogita de qualquer prejuízo, muito pelo contrário, haja vista que essa criança terá uma "rede de afetos" ainda mais diversificada a amparar seu desenvolvimento, sendo impositivo que o registro público de ciência a terceiros a este arranjo familiar sui generis mas que também deve ter reconhecimento por parte do Estado, como afirmação do princípio da dignidade da pessoa humana e da proteção da entidade familiar sem preconceito de qualquer espécie, segundo a interpretação do texto Constitucional."

Desde 2011, o advogado e professor Christiano Cassetari, diretor do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), vem contabilizando as decisões favoráveis da Justiça à multiparentalidade. Nos últimos quatro anos, cerca de 20 famílias conseguiram decisões favoráveis no Judiciário. A primeira foi em Rondônia. No cálculo não estão incluídas aquelas famílias que não procuraram a Justiça, algumas decisões de 1ª instância e outras que envolvem segredo de Justiça.

Apesar das decisões favoráveis à multiparentalidade na Justiça brasileira, ainda há obstáculos burocráticos no caminho das famílias. José não conseguiu assistir ao parto da filha. Segundo Laura, o hospital não permitia mais de um acompanhante na sala de parto, onde estavam ela e Clara. Sabendo desta regra, a família fez quase todo o trabalho de parto em casa, para que os três pudessem estar juntos.

"O primeiro contato foi a coisa mais incrível do planeta. Mas ao mesmo tempo a gente percebe os entraves do sistema. Mesmo para ficar comigo no quarto, eles só permitiam um acompanhante. A gente precisava todo o tempo eleger quem, além de mim, ia ficar com ela", lembra Laura.

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"No tamanho da emoção e do amor que tinha a nossa volta, isso é fichinha, mas eu acho que é algo muito importante a se pensar. A gente ainda tem muito o que caminhar na direção de poder permitir que as famílias diferentes possam receber o mesmo tipo de respeito e de acesso que todas as famílias hoje em dia já recebem."

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