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Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Sobre o caso Roger Abdelmassih

José Reinaldo Guimarães Carneiro*

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Por Redação
Atualização:

A história do caso Roger Abdelmassih é o retrato de tragédias individuais, distribuídas em quase duas décadas de silêncio e dor de mulheres, maridos, companheiros e familiares. No silêncio, bastante duradouro, houve uma sucessão de casamentos desfeitos, de terror e angústia acumulados e a repetição de dramas e sofrimentos particulares, rotina incompatível com a expectativa de quem depositava esperança e confiança na atuação do médico, internacionalmente conhecido.

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Em 2008, quando as vítimas se fechavam em silêncio e dor e o médico era prestigiado por influentes personalidades brasileiras, o Ministério Público de São Paulo foi procurado pela primeira vez. Não se tinha, naquele momento, a dimensão da existência de várias dezenas de vítimas. O caso, na verdade, trazia dois ou três relatos isolados, de ataques sexuais infamantes, e os Promotores de Justiça, responsáveis pela condução das apurações, tinham que decidir em romper a barreira da inércia das autoridades, para sair em defesa da sociedade.

Foi o que aconteceu. De lá para cá, a sucessão de episódios mostrou o papel fundamental de uma Instituição atenta aos acontecimentos e sem medo de brigar com gente poderosa. Porém, não foi fácil. A primeira denúncia foi rejeitada pela Justiça e o poder de investigação do Ministério Público - sempre ele em pauta - foi questionado. O inquérito policial instaurado pela polícia desapareceu nos corredores do fórum criminal e a prova, ao menos em duas oportunidades diferentes, teve que ser colhida novamente, impondo desconfiança e desgaste inimagináveis às já sofridas vítimas de tantos abusos. O Ministério Público foi à luta, vencendo inclusive a sua própria falta de estrutura interna para investigar um caso com tantas vertentes diferentes. E a investigação, com a colaboração efetiva da polícia, se tornou realidade. Ficou conhecida do grande público, para muito além de seu início, divulgada por alguns veículos da imprensa, é bem verdade que, naquele primeiro momento, não por todos.

A divulgação viabilizou a descoberta de um sem número de novas vítimas. Novas tragédias, em tudo bastante semelhantes às anteriores. O caso ganhou os Tribunais. Vieram vitórias e derrotas para a sociedade brasileira, sempre representada pelo Ministério Público. Destaca-se, em especial, a independência de uma Juíza, que, chamada à jurisdição, instruiu o processo, garantiu o exercício de acusação e defesa e, corajosa como são as mulheres de seu país, condenou o médico ao cumprimento dos já conhecidos 278 anos de reclusão.

Destaca-se, também, a independência do Tribunal de Justiça de São Paulo, que, chamado em recurso, reconheceu o direito do Ministério Público em poder produzir as suas próprias investigações, especialmente em casos delicados como são os atentados contra a dignidade sexual das pessoas. De grande derrota para o caso, registra-se a fuga do médico, antevista pelos Promotores de Justiça, que tentaram impedi-la de todas as formas. Lamentavelmente ela acabou consolidada na obtenção de uma liberdade provisória diretamente no Supremo Tribunal Federal, quando tudo indicava que o acusado pretendia obter o refúgio no exterior, para escapar da possibilidade bastante próxima, de uma condenação iminente. A escapada, que agora se vê quase cinematográfica, atrasou a realização da Justiça, frustrou as vítimas dos ataques e corroeu a confiança que elas depositaram no Poder Judiciário. Agora, com o médico recapturado, novamente por ação do Ministério Público, impõe-se redobrada cautela. É preciso compreender, pura e simplesmente, que a sentença precisa ser cumprida. É preciso retirar do episódio uma dimensão mais moderna daquilo que se entende por presunção de inocência. Não cabe margem para novos erros. Não há lugar para preciosismos e sofismas que tentarão se impor sobre a ordem natural das coisas. É certo que ainda há recursos a serem julgados. Não há dúvida sobre isso. Porém, com a história da fuga, é no cárcere que o médico deverá permanecer até a solução definitiva de seu processo criminal.

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Sobre as paixões que despertam os debates acerca de grandes julgamentos criminais, em certas oportunidades o respeito à coragem e à dor de vítimas indefesas é tão importante quanto aquele que se deve ter às garantias constitucionais dos acusados. Ficar inerte à dor das vítimas, negar-lhes credibilidade sem ao menos conhecer-lhes os motivos; omitir-se tão somente em razão da garantia da presunção da inocência, é dar vida ao crime. É cometê-lo novamente.

*José Reinaldo Guimarães Carneiro é Promotor de Justiça Criminal em São Paulo

José Reinaldo Guimarães Carneiro. Foto: Arquivo Pessoal
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