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Quem tem medo do amor e da liberdade?

Por Roberto Dias e Juliana Maggi Lima
Atualização:
Roberto Dias e Juliana Maggi Lima Foto: Estadão

No último dia 15 de junho, a Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva publicou neste espaço um texto intitulado "As tentativas de destruição da família brasileira". Para combater o poliamor, a autora afirma, por exemplo, que "a poligamia, na maior parte dos países em que é adotada, produz, entre outros efeitos, desigualdade entre homens e mulheres", além de gerar "mais homens solteiros, que estão mais sujeitos à prática de crimes". Há, também, o argumento de "que a poligamia é adotada em poucas regiões" e "esse tipo de relação não é costumeiro no nosso país".

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Enfim, além de não ser algo normal, as sociedades poligâmicas gerariam mais problemas do que as monogâmicas. Se isso tudo não bastasse, a autora afirma que as relações poliafetivas não poderiam ser admitidas, pois seriam inconstitucionais.

Como sabemos, até 1890, no Brasil, o único casamento reconhecido pelo Estado era o religioso. Antes, até a década de 1860, o único casamento admitido pelo Estado era o católico. Não eram aceitos sequer casamentos "mistos", isto é, entre católicos e fieis de outras religiões.

No Código Civil de 1916, inspirado no modelo tradicional de família, o homem era o chefe da sociedade conjugal e, até 1977, o casamento era indissolúvel. Mudamos a ordem jurídica então vigente para possibilitar o divórcio, mas, ainda assim, com a necessidade de separação prévia do casal. Uma espécie de "tempo" jurídico para amadurecimento da vontade daqueles que pretendiam romper a sociedade conjugal.

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Apenas com a promulgação da atual Constituição é que o casamento ganhou outras feições e deixou de monopolizar o conceito de família. Até então, família era constituída apenas pelo casamento válido. Filhos eram legítimos ou ilegítimos em razão da existência ou não de casamento entre seus pais. A partir de 1988, além do casamento entre um homem e uma mulher, foi reconhecida formal e expressamente pela Constituição a família monoparental - formada por qualquer dos pais e seus descendentes - e a união estável.

Em 2011, o Supremo Tribunal Federal, em decisão histórica, decidiu que a Constituição não proibia a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Foi reconhecida, então, a união homoafetiva como apta a formar uma família.

O que queremos dizer com isso é que as relações amorosas não são estáticas e uniformes. E, consequentemente, o casamento é um instituto mutável, que sofreu grandes impactos nos últimos tempos. Antes, era indissolúvel e, agora, alguns pretendem que seja monogâmico, por motivos religiosos, morais e patrimoniais. Isso porque a mãe é sempre certa (pelo parto) e o pai não. O genitor, conforme estabelecido pelo Direito Romano, quando não havia exames genéticos, deveria ser o marido da mãe. Se não houvesse a monogamia, como dividir o patrimônio? Como definir quem é o pai? Aí se encontram os fundamentos da monogamia.

Para além disso, cabe perguntar: por que é necessário que o Estado chancele o que é ou não família? A resposta poderia ser: porque a família é a base da sociedade e recebe proteção especial do Estado. Assim, o questionamento principal é: por que não podemos simplesmente declarar quem é família, para além dos vínculos possíveis já existentes (biológico, civil ou de afinidade), alargando a socioafetividade para a esfera da autonomia privada?

Como se argumentou quando do julgamento das uniões homoafetivas pelo STF, o Brasil, do ponto de vista constitucional, busca constituir uma sociedade livre, justa e solidária, promovendo o bem de todos, sem preconceito ou discriminação. Grande parte dos argumentos desenvolvidos na ocasião pode ser usada para defender as uniões poliafetivas.

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Dizer que o poliamor não é algo "normal" ou "costumeiro" parece-nos um argumento, no mínimo, frágil. Basta lembrar que, durante séculos, a escravidão foi considerada "normal". O mesmo se pode dizer em relação à tortura. E vale lembrar que, até 1967, com o julgamento do caso Loving v. Virginia pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, eram admitidas leis estaduais que criminalizavam o casamento inter-racial. Há, hoje em dia, alguém que sensatamente defensa isso?

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Numa sociedade democrática, pluralista e laica, não se pode admitir que minorias sejam subjugadas pela vontade autoritária da maioria que professa certa religião ou segue determinado padrão moral. Só um Estado totalitário pode impor determinada concepção moral a todos.

Num Estado democrático, que consagra a liberdade como um dos direitos fundamentais, devemos ser livres para dar a nós mesmos as regras que irão reger nossos interesses. Ninguém deve impor ao outro a poligamia, assim como não se pode aceitar a imposição da monogamia.

A Constituição ainda protege a intimidade e a vida privada das pessoas. Portanto, não interessa a mais ninguém, a não ser aos próprios envolvidos, com quem uma pessoa se relaciona afetivamente e se essa relação é heteroafetiva, homoafetiva, monogâmica ou poligâmica. Sendo pessoas capazes, as relações consentidas que elas mantêm só interessam a elas mesmas.

Reconhecer a união poliafetiva também geraria mais estabilidade às relações jurídicas e segurança entre os parceiros, bem como a terceiros. Haveria mais previsibilidade diante de um litígio, por exemplo, sobre herança, partilha de bens e alimentos. Isso se chama segurança, direito fundamental previsto no art. 5º da Constituição Federal.

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Por fim, como aceitar o argumento de que "a poligamia, na maior parte dos países em que é adotada, produz, entre outros efeitos, desigualdade entre homens e mulheres", além de gerar "mais homens solteiros, que estão mais sujeitos à prática de crimes"? Não podemos dizer que o Brasil seja um país poligâmico. Longe disso! E, sendo fortemente monogâmico, há igualdade entre homens e mulheres? Basta ver a desigualdade de remuneração e de representação parlamentar feminina. Não somos uma sociedade violenta? Basta ver a quantidade de feminicídios que são registrados Brasil afora.

Esse debate nos faz lembrar Boaventura de Souza Santos: "temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades".

Roberto Dias, advogado na área de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP.

Juliana Maggi Lima, advogada de Direito de Família, mestranda em Direito Civil pela USP.

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