Os dispositivos da Instrução Normativa nº 108/2016 da Polícia Federal que autorizam delegados da corporação a negociar acordo de delação premiada são 'indevidos e representam risco para a atividade investigativa'. Essa é a posição da Câmara de Controle Externo da Atividade do Ministério Público Federal (7.ª Câmara), que aprovou na quarta-feira, 22, nota técnica sobre o tema.
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NOTA TÉCNICA DA DELAÇÃOA nota técnica será encaminhada aos membros do Ministério Público Federal em todo o país 'para orientar as atuações em casos que envolvam o controle externo difuso ou concentrado da atividade policial'. Também será remetida à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e aos ministros do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.
O documento questiona outros pontos da instrução normativa, que prevê a possibilidade de a Polícia Federal requerer medida cautelar diretamente ao juiz, arquivar investigação interna sem submeter a decisão ao Ministério Público e declinar competência de investigação para a Polícia Civil 'sem qualquer controle por parte do Ministério Público'.
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Além disso, segundo avaliação da Procuradoria, a instrução da PF 'cria novas categorias de procedimentos policiais não previstas em lei'.
Para o MPF, 'as medidas violam a Constituição e subvertem o funcionamento do Sistema de Justiça, com prejuízo para a investigação, para a eficácia da persecução penal e para a proteção dos direitos fundamentais e do sistema de freios e preservação contrapesos entre os órgãos de poder previstos na Carta magna'.
A nota técnica destaca 'a importância de uma interação harmoniosa entre o Ministério Público Federal e o Departamento de Polícia Federal, considerando-se o papel de cada instituição, conforme definido na Constituição Federal'.
De acordo com o coordenador da 7.ª Câmara, subprocurador-geral da República Mario Bonsaglia, 'as instituições devem agir dentro de seus limites e papéis constitucionais'.
"A colaboração da polícia é fundamental para que o Ministério Público possa promover com êxito as ações penais, mas a estratégia e atuação processual é atribuição do Ministério Público, que também tem a responsabilidade de exercer o controle externo da própria polícia", assinala Bonsaglia. "Veleidades de alteração da Constituição para modificar esses papéis não devem contaminar a relação entre os órgãos."
O Ministério Público Federal considera que 'há grave violação ao texto constitucional no ponto que autoriza os delegados de polícia a negociar acordo de colaboração premiada e propor diretamente à Justiça a concessão de perdão judicial ao réu colaborador'.
A nota técnica destaca que a Constituição (artigo 129, I) prevê que o Ministério Público é o titular privativo da ação penal.
"A decisão de celebrar ou não a colaboração premiada interfere direta e profundamente na persecução criminal", diz a nota técnica, que cita posição já defendida pelo Ministério Público Federal por meio das Câmaras Criminal, de Combate à Corrupção e da própria Câmara de Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional.
"A realização de acordo envolve uma série de reuniões de negociação que dependem da análise da melhor alternativa para o acordo, levando em consideração todos os fatos e seus possíveis desdobramentos, interferindo na estratégia de quem postula em juízo", diz o documento.
A exclusividade do Ministério Público, segundo a nota, na celebração dos acordos 'busca assegurar segurança jurídica ao colaborador e maior eficácia nos resultados da ação penal'.
"É um risco à própria ampla defesa, matriz deontológica do devido processo legal, firmar acordo de colaboração com o delegado de polícia, uma vez que tal pacto não pode vincular o titular da ação penal", diz o texto, lembrando a existência de ação direta de inconstitucionalidade (ADIN 5508) contra dispositivos da Lei 12.850/2013 (artigo 4.º, parágrafos 2.º e 6.º) que atribuem a delegados de polícia o poder de realizar acordos de colaboração premiada.
A ADIN é de autoria da Procuradoria Geral da República e está sob sob a relatoria do ministro Marco Aurélio.
A nota lembra que, por ser o único titular da ação penal pública, o Ministéro Público é o órgão legitimado a atuar em juízo e a avaliar sobre a oportunidade de aplicação de medidas cautelares, tais como a prisão preventiva, a busca e apreensão, a interceptação telefônica e a quebra de sigilo fiscal ou bancário.
A 7.ª Câmara considera 'uma prática inadequada ao processo legal a previsão de medidas cautelares solicitadas pelos delegados diretamente aos juízes'.
A nota diz que cabe ao Ministério Público avaliar, segundo a estratégia processual que, como titular privativo da ação penal pública, desenvolver no caso concreto, se determinada medida cautelar sugerida pela Polícia é ou não essencial para o processo, se é adequada aos fins da apuração da infração ou se há algum abuso investigatório no caso.
"Ao analisar as medida cautelares solicitadas pela Polícia, o Ministério Público atua para impedir a realização de diligências que tragam constrangimentos desnecessários ou se mostrem abusivas. Isso traz eficácia para a persecução penal e serve como importante instrumento de controle externo da atividade policial, garantindo que a investigação ocorra dentro do previsto na legislação."
A nota técnica pondera que o declínio de competência por parte da Polícia Federal, encaminhando diretamente casos para a Polícia Civil, usurpa a atribuição do Ministério Público de avaliar a competência federal, conforme previsto pelas Resoluções 163 e 446 do Conselho de Justiça Federal, que regulam a tramitação direta do inquérito policial.
Na avaliação do Ministério Público Federal, 'conferir à Polícia Federal qualquer autonomia que enfraqueça o controle sobre o braço armado do Estado traz evidente risco de arbítrio na atividade investigativa'.
O Ministério Público também alerta para 'os riscos de a PF arquivar casos internamente, sem submeter a decisão à apreciação do MPF, como exige a lei'.
O MPF questiona ainda os termos da instrução normativa no que diz respeito à criação de novas categorias de procedimentos policiais não previstos em lei. "A norma do diretor-geral sequer apresenta um rol de quais seriam os procedimentos policiais [a serem criados], sendo possível pinçar uma e outra categoria", diz a nota técnica.
Com as novas categorias de procedimentos policiais, a Polícia poderia, na prática, arquivar uma investigação sem submeter o arquivamento ao Ministério Público. Segundo a nota técnica, seria 'uma forma indevida de burlar o previsto no artigo 17 do Código Penal, que veda o arquivamento de inquéritos pela própria Polícia'.