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'Prisão não acaba com corrupção', afirma criminalista

João Mestieri, advogado e professor, diz que Direito penal 'pode ser comparado a um quarto de despejo das coisas indesejáveis da sociedade'; para ele 'a grande reforma é a reforma social, moral'

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Por Redação
Atualização:

João Mestieri. Foto: Arquivo Pessoal

Por Fausto Macedo e Julia Affonso

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O advogado João Mestieri considera que o Direito penal 'pode ser comparado a um quarto de despejo das coisas indesejáveis ou indesejadas da sociedade'. Dono de uma larga experiência nos tribunais, Mestieri alerta para o que chama de 'violações imensas de aplicação do direito penal quanto a garantias constitucionais'.

Professor da PUC/RJ - Direito Penal, Direito Processual Penal, Criminologia e Sociologia do Direito -, João Mestieri é uma referência da advocacia. Nos últimos meses, seu nome ficou ainda mais em evidência porque assumiu a defesa do ex-diretor de Abastecimento da Petrobrás Paulo Roberto Costa, primeiro delator da Operação Lava Jato - em troca de redução de pena, ou até mesmo do perdão judicial, Costa revelou os bastidores do esquema de propinas que se instalou na Petrobrás entre 2003 e 2014.

Nessa entrevista à reportagem do Estadão, Mestieri é taxativo: "A prisão não acaba com corrupção, como pena de morte não acaba com nenhum tipo de crime maior."

ESTADÃO: Muitos advogados têm criticado severamente trechos do novo Código Penal (PLS/2012). Alegam que o texto prevê um 'endurecimento de penas'. Qual a sua avaliação?

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ADVOGADO JOÃO MESTIERI: Se o direito penal novo é mais duro do que o mais antigo isso é uma valoração bastante limitada e acientífica do verdadeiro problema. O direito penal tem uma natureza que é subsidiária, ou seja, ele serve para contingências que não possam ser resolvidas, neutralizadas, pelos outros sistemas do direito, civil, administrativo. Ele não funcionava na sociedade, se for visto como uma panacéia. Se ele for visto como a solução para todas as questões. Se ele for considerado desta forma, ele não será eficaz. Isso é garantido, não será eficaz. O direito penal tem condições de ser aplicado na medida em que ele diga respeito a certas e determinadas questões pontuais, nada além disso. Portanto, uma reforma penal, sozinha, não faz nenhum sentido. Porque a grande reforma é a reforma social, é a reforma moral, a reforma ética, a reforma econômica, a reforma política. Todas essas reformas devem ser feitas e, o que sobrar, o que ainda não for abrangido por essas reformas é que vai ser consideração do direito penal. Assim, ele vai ser mais gravoso, ou menos gravoso dependendo dos resultados das políticas muito maiores que ele. Direito penal pode ser comparado como um quarto de despejo das coisas indesejáveis ou indesejadas da sociedade. Então, os piores comportamentos, os piores crimes, as piores reações, essas matérias é que fazem parte do direito penal. Pretender melhorar a sociedade mexendo, modernizando, entre muitas aspas, o direito penal é prova cabal de não conhecimento da realidade social ou, pior, deliberada estratégia de não solucionar as reais questões sociais empregando os reais remédios sociais.

ESTADÃO: Que mudanças o senhor sugere para o novo Código Penal?

ADVOGADO JOÃO MESTIERI: Primeiro lugar o direito penal precisa adequar-se a realidade brasileira, cultural, orçamentária, filosófica. E, evidentemente, deve ser previsto e deve ser aplicado de acordo com os princípios de garantia constitucional. Hoje há violações imensas de aplicação do direito penal quanto a essas garantias constitucionais. Do mesmo modo que, no processo penal também se veem muitas violações às garantias e, na execução penal, praticamente a totalidade dos fatos são todos eles em contraste com as garantias constitucionais. Ou seja, que se quer dizer? A pena que se prevê no Código Penal chama-se culminar pena, a previsão abstrata da pena no Código Penal não será a aplicada a um determinado individuo em razão de um determinado fato por ele praticado. Essa pena, assim que já diferimos aplicada, jamais será executada de acordo com as regras da execução penal, porque o sistema brasileiro, como muitos outros sistemas no mundo, América Latina em geral, não ofereceu as condições mínimas de execução penal de acordo com a lei de Execução Penal de 1984. Então, numa visão bastante rigorosa da realidade nós poderíamos dizer que diante disso caberia um grande habeas corpus, um habeas corpus total, para liberar a todas as pessoas que estão sendo vitimadas por penas criminais, na medida em que nenhuma dessas penas atende ou responde aos princípios previstos no Código de Processo Penal e menos ainda na lei de Execução Penal.

ESTADÃO: O texto em discussão no Congresso dificulta medidas de ressocialização?

ADVOGADO JOÃO MESTIERI: O texto discutido no Congresso Nacional não dificulta medidas de ressocialização. A ressocialização é uma ideia que surgiu no inicio dos anos 50, bastante fortemente, até em escritos do pai do Código de 1940, que é o Ministro Nelson Hungria e de outros, como o professor Roberto Lira. Ali se enunciava uma mudança muito importante, vencendo o binômio clássico que o que é justiça penal é aplicar a pena justa ao mal injusto do crime de acordo com certa proteção. Carrara dizia: ao mal injusto do crime contrapõe-se o mal justo da pena. Essa era a ideia clássica a que se referiram, também, os nossos autores clássicos. Os anos 20, anos 30 do século passado. Mas depois acordamos para uma ressocialização. Essa ressocialização venceria até determinadas características de justiça de proporção entre o mal feito e a pena. Nós abrimos mão até disso, para conseguirmos a recuperação do indivíduo; só que isso ficou na poesia, ficou no papel, ficou no ideário dos cientistas, porque jamais houve no Brasil e na América Latina em geral nenhuma iniciativa de emprego de dinheiro para obter isso. Aquilo que o Código Penal em 1940 já dizia, aqueles condenados por reclusão, ficam separados daqueles condenados por detenção e também separados esses ambos daqueles condenados à prisão simples. Nem isso nós conseguimos fazer no Brasil. Menos ainda dominar a técnica de uma execução progressiva da pena para chegar a esse resultado de ressocialização, muito embora tenha havido um grande progresso, um notório progresso. Em 1984, quando nós inclusive colaboramos com o ministro da Justiça em Brasília com a criação ao lado das penas dos sistemas prisionais. Sistemas de execução são precisamente aquilo que se precisava para começar. São eles: sistema fechado, sistema semiaberto, sistema aberto, ao lado das condições de pena e das qualidades de pena, reclusão, detenção, etc. Então, era algo que se ajuntava, que se justapunha à realidade da pena e da sua execução para permitir isso, mas a resposta continua exatamente a mesma, nada aconteceu de poderoso, de mudança de qualidade porque não há investimento. E porque não há investimento? Porque não dá voto, porque a situação do povo, a clientela do direito penal de um modo geral é de pessoas muito pobres e a maioria do povo brasileiro é muito pobre e também honesta. A maior do povo brasileiro que é pobre e honesta não aceitaria que aquela parte minoritária dos pobres não honestos recebesse benesses porque são desonestos. Até porque os honestos não recebem. Interessante: criar-se-ia uma anomia que é exatamente a não participação dos valores bons quando deveriam participar, mas eles não estão participando. Ah!, mas se eu tivesse roubado, estuprado, dado um desfalque na empresa não sei de onde, aí não, aí eu teria curso básico, teria curso profissionalizante, sairia com carteira de identidade, com emprego, com tudo, mas se for puramente honesto aí não. Então, é muito difícil estabelecer essa política dentro da situação de miséria do povo brasileiro.

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ESTADÃO: O sr. defende aumento da pena para algum tipo de crime?

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ADVOGADO JOÃO MESTIERI: Eu não defendo e não conheço nenhum jurista que proponha aumento de pena para crime algum porque esta mais do que provado que o aumento de pena, qualquer pena para qualquer crime, não é eficaz para diminuir os números das estatísticas. O que se pode fazer é prevenir um crime. É estabelecer situações em que fique muito mais difícil a presença do crime, prevenção do crime e etc. o que nós tivermos no Brasil, no Rio de modo especial, se quisermos ver os últimos 50, 60 anos. Há 60 anos, nós tínhamos a Polícia Militar muito bem organizada com patrulhamentos naquele sistema de Cosme e Damião. Eram dois soldados que patrulhavam incessantemente todos os bairros. Havia sim uma policia ostensiva preventiva. Além disso, tinha a Polícia Civil que saía às ruas. Hoje não há nada disso, a população esta a mercê de qualquer um. Os assassinos, ladrões, não se dão sequer ao trabalho de correr porque não é necessário. Nós temos, sim, oficiais de trânsito, muito simpáticos, que estão preocupados em prevenir os problemas do trânsito, mas ninguém preocupado em prevenir crimes, esses crimes todos, bárbaros, que estão acontecendo, como o da Lagoa Rodrigo de Freitas. A tendência é que eles venham não só a se repetir como a serem praticamente uma regra, porque não há o que temer. Precisamos saber se há:1) vontade política; 2) se há investimento; e 3) se há capacidade técnica para aproveitar os recursos existentes.

ESTADÃO: Acusados por roubo e corrupção devem ter o mesmo tratamento do Estado?

ADVOGADO JOÃO MESTIERI: A reforma. A única reforma que vale a pena ser feita em verdade é a reforma que particularize as formas de execução das penas privativas ou restritivas de liberdade. Isso sim. Então, aí seria o caso de se fazer distinções entre os crimes de roubo, os crimes chamados de latrocínio, os crimes de corrupção, os crimes de lavagem de dinheiro, etc. Os crimes violentos, os crimes não violentos. Deveria existir uma gama de soluções de execução que pudesse lidar com as essas particularidades de cada situação, só nesse sentido, mais nada.

ESTADÃO: Prisão acaba com a corrupção?

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ADVOGADO JOÃO MESTIERI: Prisão não acaba com corrupção, como pena de morte não acaba com nenhum tipo de crime maior. A pena de morte existe praticamente na metade dos Estados americanos e os índices de reincidência são mais ou menos idênticos. Portanto, pena não resolve nada. O que resolve é algo que possa vir antes da pena. A pena já é uma consequência que pega o indivíduo num estado de quase incapacidade de voltar ao estado anterior. Então, a pena é simplesmente uma resposta do Estado, grave, uma resposta ruim, uma resposta contundente, uma resposta massacrante que nem de longe pode permitir ressocialização alguma.

ESTADÃO: Acredita na delação premiada como instrumento eficaz no combate a organizações criminosas?

ADVOGADO JOÃO MESTIERI: A questão da delação criminosa não pode ser analisada em si mesma, ela pressupõe uma maneira diferente de encarar a verdade, maneira diferente de encarar os fatos de um processo e os fatos da vida. O que mais fica saliente é que no processo penal moderno costuma-se dizer que o réu pode mentir. Não é bem isso, o que se diz, ou o que se queria dizer é que ele, ainda que minta não pode ser processado, apenado pelo fato da sua mentira porque a sua defesa é algo que não se pode levar para o patamar das penas. Isso, na verdade, é uma forma bastante primitiva de ver essa questão. O que se perdeu com o tempo foi a necessidade da verdade. Quer dizer, do primado da verdade. Ninguém mais fala no primado da verdade. A desconfiança em relação à verdade é tão grande que existe no processo penal, o princípio da verdade real, como se pudesse haver uma verdade irreal. E, portanto, o objetivo do processo brasileiro, penal especialmente não é extensivamente dizer a verdade, mas é o magistrado procurar navegar através das varias colocações de retórica feitas pelas partes, não se deixar enganar. Procurar os princípios fundamentais e a partir dai estabelecer fundamentos para a decisão, ou seja, o magistrado não pressupõe que vá receber a verdade, o magistrado pressupõe que vai receber mentira. O magistrado pressupõe que vai receber retórica, que é uma forma bonita de apresentar.

ESTADÃO: O que pensa da redução da maioridade penal?

ADVOGADO JOÃO MESTIERI: O vezo de se discutir o valor da maioridade penal e exemplo antológico de uma tal postura da impostura. Em termos da teoria do Direito Penal, do Processo Penal, da Criminologia e, em especial, do Penitenciarismo, a redução da menoridade penal e absolutamente ineficaz para a diminuição dos números da criminalidade. O que veladamente se pretende é substituir politicas públicas caras necessárias, imprescindíveis, e com o efeito indissociável de abrir os olhos do cidadão para as realidades sociais, por paliativos de alto impacto populista que venham de encontro aos anseios imediatistas da população, ávida de uma reação a altura do estado de coisas, ou seja, a criminalidade sem controle, sem programa de equacionamento, sem solução e sem punição.

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O erro de base é evidente: não se diga que se possa tributa-lo à ignorância das regras sociais. O clamor público quer reações que respondam aos seus sentidos de percepção; entende-se que se os menores entre 16 e 18 anos forem imputáveis, haverá com isso uma inibição desse segmento da delinquência e, via de consequência, teríamos o efeito positivo da redução da criminalidade. Os menores assim imputáveis seriam submetidos ao sistema carcerário comum, vale dizer, teriam ingresso no sistema penitenciário do estado. Note-se que o discurso a favor da redução da idade de imputabilidade evita examinar a qualidade do sistema penal "dos adultos", sua realidade e eficácia.

Diante do fracasso do Estado no implementar ações preventivas e satisfativas da plenitude dos direitos individuais, procura-se, retoricamente, chamar a atenção não para esses gaps de satisfação social, mas para os malfeitos daqueles que, desassistidos do governo e da sorte, chegam ao crime. Enquanto se pretende incriminar o jovem a partir de seus dezesseis anos, evita-se que o foco da opinião publica pouse sobre a inércia do Estado em cumprir as prioridades de governo, de privilegiar no orçamento a aplicação de recursos em políticas publicas fundamentais.

Os menores entre 16 e 18 anos que se quer alcançados pela disciplina penitenciaria comum, também, a maneira do que ocorre com os adultos, são em quase toda a linha, sobreviventes sociais. Sem instrução formal, sem substrato familiar, sem guia e sem exemplos de vida regrada. Encarcerados na vala comum dos adultos penitenciários, o que se pode esperar deles ao findar da pena? A resposta é simples e trágica: serão eliminados nos guetos das favelas e pocilgas, junto com malviventes ligados as drogas e ao crime patrimonial violento, especialmente se forem negros. A questão, como toda a gente sabe, ou deveria saber, não e de repressão mais enérgica e paritária a delinquência adulta, mas de fazer valer, obrigar o governo a funcionar, a prover as comunidades de verdadeira saúde e de verdadeira educação; e ainda, no momento adequado e necessário, de verdadeiras oportunidades de participação social. Isso cumprido, como por encanto, os índices de criminalidade cairiam drasticamente, os bandidos do morro não poderiam aliciar os jovens, nao seria bom para os adolescentes procurar desde logo 'levar vantagem' na vida, presente uma oportunidade, porque teriam ao seu dispor um programa de vida decente, uma carreira e, ate mesmo, o apoio de uma família, da sua família.

Portanto, em conclusão. o problema da delinquência juvenil não encontrara solução na aplicação às suas necessidades do direito dos adultos. O Estatuto da Criança e do Adolescente é um documento legislativo de grande valor, mas que pode ser revisado para se criar uma política mais elaborada e complexa para a delinquência dos adolescentes, mas sem se perder a natureza, a qualidade, desse desafio social. Por fim, não podemos esquecer que, seja para a delinquência juvenil, seja para a delinquência adulta, nada, absolutamente nada, poderá avançar no sentido social, se não houver a participação responsável dos governos com sanções positivas, ou seja, boa saúde, boa educação e, diga-se, bons exemplos.

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