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Os benefícios da nota fiscal paulista

Por Priscila Pasqualin Afonso de Souza
Atualização:
Priscila Pasqualin. Foto: Arquivo Pessoal

Aumentou a arrecadação sem aumentar proporcionalmente o gasto com a máquina pública necessária para fiscalizar inúmeros estabelecimentos comerciais que antes sonegavam o ICMS ao não emitir o cupom fiscal.

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O cidadão paulistano passou a pedir o cupom fiscal feliz, sentindo no bolso o benefício financeiro, quase que simbólico, no tocante ao valor, mas de profunda relevância ao fortalecer o exercício da cidadania. Com um pequeno estímulo, o cidadão passou a exigir o cumprimento da lei ao invés de pedir desconto se pagar sem nota.

Mas gostaria de chamar a atenção para a inovação feita com a possibilidade de doação dessa pequena porção do ICMS para organizações da sociedade civil de assistência social, saúde, educação, cultura e meio ambiente, previamente aprovadas pelo Governo do Estado.

Com o tempo, as instituições se organizaram e essa passou a ser uma fonte relevante de recursos. Tanto para as instituições recordistas nessa modalidade de arrecadação, que acumularam mais de um milhão de reais por semestre, e esse recurso passou a ser fonte de custeio para ações estratégicas para as quais é difícil captar recursos. Quanto para as instituições pequenas, que passaram a contar com essa quase única fonte de recursos livres, tão benvindos para situações de emergência ou para atividades meio, necessárias para garantir a transparência e gestão profissional e eficiente, algo que a maioria dos doadores ou parceiros, mesmo públicos, não querem bancar, mas adoram exigir.

O governo também ganhou, pois passou a contar com um batalhão de pessoas que contribuem com a arrecadação, ao espalhar urnas pelos diversos estabelecimentos comerciais e incentivar a emissão dos valiosos cupons. Ganhou também ao fortalecer as organizações da sociedade civil que cumprem parte das funções do Estado ao levar seus serviços à população e sociedade, sem fins lucrativos para seus instituidores.

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A doação dos créditos de ICMS para essas instituições mudou radicalmente a partir desse mês de janeiro.

As urnas não serão mais permitidas e cada consumidor é que deverá fazer a doação, cupom a cupom, através do aplicativo da Secretaria da Fazenda. Dos muitos milhões destinados a essas organizações, o que se estima é que haverá uma queda brutal.

Uma das justificativas do governo foi que o programa já cumpriu sua função. Talvez a função inicial de aumentar a arrecadação tributária, evitando a sonegação de diversos estabelecimentos, tenha sido cumprida. Outra justificativa é que o Governo não tem equipe suficiente para fiscalizar as instituições cadastradas no programa.

Será que não é o momento de potencializar ainda mais o programa em prol da sociedade e trazer mais uma inovação, com ganhos diretos e indiretos, tal como o exercício da cidadania?

Até hoje o programa distribuiu quase 16 bilhões de Reais a cidadãos e instituições cadastradas. Desse valor, apenas 6% foi destinado às instituições. Atualmente constam como ativas no programa cerca de 4300 instituições.

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Que tal, ao invés de pulverizar os recursos em milhares de instituições, manter a destinação do mesmo volume de recursos a um menor número de instituições referência em cada uma das áreas - assistência social, saúde, educação, cultura e meio ambiente - permitindo que elas gastem uma parte dos recursos em suas próprias iniciativas e exigindo que elas selecionem instituições menores a receber outra parte desses recursos, de maneira organizada pela própria instituição? Com isso, o governo passa a monitorar um número menor de instituições que, por sua vez, têm que estabelecer parcerias com outras instituições.

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Ora, as organizações da sociedade civil têm um papel relevante em nossa sociedade e podem ter um papel ainda maior. Os melhores hospitais do país são privados e filantrópicos. As melhores instituições de humanização da saúde são organizações da sociedade civil sem fins lucrativos. Temos instituições de ensino, escolar ou superior, excelentes e referência no país, filantrópicas ou sem fins lucrativos. Muitas instituições culturais ícones de São Paulo nasceram e são mantidas pela sociedade civil. E as instituições ambientalistas, então? O que seria do meio ambiente se essas instituições privadas, sem fins lucrativos e independentes, não ficassem monitorando e alardeando a devastação ambiental para exigir mudanças?

Estamos em meio a uma crise de confiança nas instituições todas e, no fundo, nas relações humanas em nossa sociedade. Mas temos uma sociedade civil organizada cada vez mais madura. O Governo do Estado de São Paulo poderia ousar e chamar à mesa as instituições recordistas de arrecadação, por exemplo, que já demonstram no mínimo uma boa capacidade de organização, para construir um programa de parceria muito mais profundo e eficiente para a sociedade, numa real união de esforços e virtudes da área pública e da iniciativa privada.

O Governo poderia manter a opção do cidadão destinar, a cada compra, os recursos do ICMS à instituições através de urnas nos estabelecimentos comerciais ou, ainda, a determinadas organizações da sociedade civil previamente divulgadas pela própria Secretaria, que seriam alteradas a cada ano. A cada ano o Governo selecionaria poucas organizações por área de atuação e definiria que parte dos recursos poderia ser usado pela própria instituição e a outra parte deveria ser aplicado em outras organizações através de parcerias monitoradas pela instituição que recebe os recursos, com metas estabelecidas em conjunto pelas instituições privadas parceiras.

Com isso podemos ter uma sociedade civil mais fortalecida sob o ponto de vista financeiro, mas, sobretudo, em sua capacidade de autonomia na gestão de problemas sociais, e de estabelecimento de parcerias estratégicas e ações conjuntas em prol de direitos sociais básicos, previstos em nossa Constituição Federal, artigo 6º: a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, à moradia, à alimentação e ao transporte.

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E por que confiar nessas organizações da sociedade civil?

Em meio a essa crise e com a esperança de que a saída passa por garantir a todos o direito ao menos à educação e à saúde, caso contrário não teremos um país de pé em poucos anos, há uma movimentação crescente de pessoas que não se conformam com isso e querem fazer a diferença em nossa sociedade. Pessoas que abrem mão de carreiras promissoras em empresas tradicionais para se dedicar a causas sociais em instituições sem fins lucrativos. Pessoas que destinam parte de suas fortunas a conceder bolsas de estudo e de pesquisa para as pessoas em geral. Pessoas se comportando como investidores anjo de empreendedores sociais que voltam seus esforços para, de maneira autossustentável, busca a solução para problemas sociais. Nossa sociedade civil amadureceu e passou não só a querer cumprir, em pequena escala, a função do Estado, ao oferecer serviços sociais a população de seu entorno, mas a propor novas políticas públicas e a exigir uma nova forma de se relacionar com o Estado, o que culminou no Marco Regulatório da Sociedade Civil, onde a autonomia e musculatura das instituições foi melhor reconhecida.

Cada vez mais as pessoas querem ocupar esse espaço, de forma diferente da forma lucrativa tradicional, buscando fazer sem fins lucrativos, ou com um lucro justo, priorizando a entrega dos serviços sociais frente ao lucro desmedido dos acionistas. Com o teto dos gastos, tanto o Estado como a população mais desfavorecida precisarão que a iniciativa privada ocupe esse espaço, com ou sem fins lucrativos.

Por que não confiar à iniciativa privada a entrega dos serviços sociais básicos a população, com e sem fins lucrativos, reduzindo o tamanho do Estado e nosso comodismo paternalista, que nos levou aonde chegamos?

Seria uma boa iniciativa dos parlamentares e dos executivos, incentivar e dar força a pessoas físicas e jurídicas, de direito privado, com e sem fins lucrativos, a dedicarem sua capacidade financeira e intelectual à resolução de nossos problemas sociais! Como? A começar pela desburocratização, pela simplificação tributária e até com pequenos incentivos fiscais, como esse do programa da nota fiscal paulista.

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Faz sentido tributar as doações de pessoas físicas e jurídicas a instituições privadas sem fins lucrativos que se dedicam a interesses sociais? Faz sentido tributar as aplicações financeiras destas mesmas instituições? Faz sentido exigir mais tributos dessas instituições do que das pequenas e medias empresas? Faz sentido tributar os investimentos anjo que, nos primeiros anos de aposta em uma nova iniciativa que pode trazer empregos e inovações? Faz sentido reduzir drasticamente o programa da nota fiscal paulista, na parte das doações às organizações da sociedade civil? Faz sentido desperdiçar os recursos investidos na tecnologia disponibilizada para a doação através desse programa?

Por outro lado, é muito importante a iniciativa privada, especialmente aquela sem fins lucrativos, investir em sua profissionalização. Faz sentido os dirigentes e fundadores de instituições sem fins lucrativos correrem risco por descumprimento desavisado da legislação porque não investiu em equipes competentes para fazer o trabalho, monitorar e corrigir eventuais erros? Ao tratar com menos profissionalismo as instituições sem fins lucrativos, ainda que de interesse público, os dirigentes acabam pondo em risco o próprio patrimônio. Em prol da eficiência e da mitigação e riscos, erros e desvios, faz sentido pagar salários altos para atrair talentos que podem dedicar toda sua capacidade intelectual e força de trabalho para trabalhar em causas sociais! Faz sentido montar conselhos de administração e de controle interno (conselho fiscal) com pessoas comprometidas, ainda que voluntariamente, a bem cumprir sua função, e não apenas figurar nos quadros honoríficos da instituição. Faz sentido a instituição investir em processos e procedimentos de compliance, para o correto cumprimento da legislação.

A confiança nasce da observação da responsabilidade. Será que não está na hora de os governantes e parlamentares darem um voto de confiança à iniciativa privada para que ela desenvolva o campo tão necessitado quanto o das causas sociais em nosso país. Será que estamos maduros para assumir essa responsabilidade? Pelas boas notícias, ainda que pouco alardeadas, de pessoas de boa vontade com alta capacidade intelectual, e pela minha própria experiência nesse ramo, me parece que sim.

*Priscila Pasqualin Afonso de Souza, é sócia de PLKC Advogados, responsável pela área de Terceiro Setor, Filantropia e Investimento Social. Diretora jurídica e de relacionamento com o terceiro setor do Instituto Reciclar

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