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O anonimato na internet e o debate que se anuncia na Justiça Eleitoral

Por Marcelo Santiago de Padua Andrade
Atualização:
 Foto: Acervo Pessoal

Em debates públicos ocorridos no TSE, vem sendo analisada a questão da internet nas eleições sob a perspectiva do anonimato, que é considerado um desvalor jurídico pelo art. 5º, IV da CF/88 ("É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato"). O art. 57-D da L. 9.504/97 (Lei das Eleições), em consonância com o Texto Constitucional, assegura também a liberdade de manifestação do pensamento nas redes sociais, vedando, contudo, o anonimato.

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A ideia que ganha força é a de que não haveria possibilidade prática de divulgação de conteúdo anônimo na internet, vez que todos os acessos feitos na rede são passíveis de gerar a locação do responsável por meio dos IPs. Ainda que determinado conteúdo não esteja assinado, seu autor seria sempre identificável, o que bastaria para afastar o anonimato vedado pela Constituição e pela Lei Eleitoral.

Analisando-se a L. 12.965 (Marco Civil da Internet), nota-se que a Lei pretendeu franquear o cenário de mais ampla difusão e circulação de ideias (art. 2º, caput); contudo (e não poderia ser diferente), os atos ilícitos praticados no ambiente da internet não são diferentes daqueles que ocorrem no plano empírico, razão pela qual seus autores podem ser penalizados civil e criminalmente (art. 7º, I da L. 12.965).

E para possibilitar a responsabilização dos envolvidos em condutas ilícitas é que a L. 12.165 (art. 10, caput, § 1º e art. 22) determina que, em razão de ordem judicial, devem os provedores de conexão e de acesso a aplicações da internet disponibilizar os registros de conexão, tais como data e horário do início e término da conexão, sua duração e o IP utilizado pelo terminal para o envio e recepção de pacotes de dados, além de outras informações que possam contribuir para identificação do usuário ou do terminal.

Ao mesmo tempo em que pretendeu garantir a livre manifestação do pensamento na internet, a L. 12.965 quis garantir a identificação do usuário em caso de práticas ilícitas. Essa identificação do usuário exclusivamente para a apuração de responsabilidade civil ou penal é, inclusive, corolário lógico do princípio da neutralidade da rede (Decálogo CGI, Res. CGI.br/Res./2009/003, P, item 7; e art. 18 da L. 12.965), segundo o qual os provedores não podem ser responsabilizados por atos de terceiros.

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IPv4 e as portas lógicas de transição até a implementação completa do IPv6

Todavia, uma importante questão deve ser equacionada: Toda conexão à internet exige o uso de um IP (internet protocol), que é a tecnologia que permite que pacotes de dados circulem pela rede de forma consistente e que possibilita um grau de identificação do usuário da rede (é um certo grau porque ele identifica o terminal, mas não necessariamente seu usuário).

No início da era comercial da internet, a tecnologia pela qual se optou em matéria de IPs foi o do IPv4, que permite a criação de, aproximadamente, 4,3 bilhões de IPs espalhados pelo mundo (distribuídos de forma não isonômica, é importante dizer). Hoje, com a expansão da internet, chegou-se a um momento em que o IPv4 deixou de ser suficiente, tendo havido a necessidade de criação do IPv6 (que pode gerar um número incrivelmente grande de endereços; 3.4x1038).

Mas, em razão do alto custo da implementação do IPV6 (hoje no Brasil cerca de apenas 20% dos acessos ocorrem por meio dele[1]-[2]), uma as formas paliativas utilizadas para se atender à crescente demanda por IPs foi o seu compartilhamento por meio de portas lógicas de conexão (tecnologia que permite o compartilhamento de IPs do IPv4 entre vários usuários, simultaneamente). Isso implica dizer que, hoje em dia, é altamente provável a situação em que um IP é compartilhado por inúmeros terminais, que somente podem ser identificados se, além do IP, houver o fornecimento da porta lógica de conexão. E um grande debate jurídico existe com relação à obrigatoriedade de ser exigir, do provedor de conexão e aplicação, a indicação da porta lógica.

Uma corrente defende que os dados que devem ser obrigatoriamente guardados são somente os indicados no art. 5º, VIII da L. 12.965, que indica que para os fins daquela Lei (Marco Civil da Internet) considera-se registro de acesso a aplicações de internet apenas o conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação da internet de um determinado IP (grifos nossos) e, como inexistiria obrigação legal da guarda da porta lógica pelos provedores de aplicação (que teria custos elevados, especialmente para pequenos provedores) não se poderia exigir a apresentação da informação em juízo.

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Além da invocação do princípio da legalidade, os defensores desse ponto de vista afirmam que a falta de alusão à porta lógica no Decreto nº 8.771/2016 (que regulamentou o Marco Civil da Internet) somente pode significar que não se pretendeu ampliar os dados que devem ser guardados.

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Exemplo da aplicação dessa posição na jurisprudência é o Acórdão TJSP no Agravo de Instrumento nº 2066869-18.2017.8.26.0000[3], Rel. Des. José Joaquim dos Santos, j. em 23.11.2017.

Já outra posição entende que, se determinado por decisão judicial a exibição da porta lógica, teria o provedor a obrigação de apresentar o dado, especialmente porque o art. 10, § 1º da L. 12.965, ao tratar do dever de guarda dos registros de acesso à internet, indica outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, o que abarcaria a Porta Lógica.

O Marco Civil da Internet, de acordo com essa corrente, deve ser interpretado sistemática e finalisticamente e deve considerar o cenário tecnológico do momento da exaração da decisão judicial. Se prevalecer o entendimento de que os provedores de aplicações ficam dispensados da guarda de informações referentes às portas lógicas, chegaria-se a situações de impunidade decorrentes de um verdadeiro caso de anonimato.

Nesse sentido, conferir o v. Acórdão TJSP no Agravo de Instrumento nº 2206954-25.2015.8.26.0000[4], Rel. Des. Paulo Alcides, j. em 12.05.2016, ou ainda o v. Acórdão TJSP no Agravo de Instrumento nº 2153219-47.2017.8.26.0000, Rel. Des. Theodureto Camargo, j. em 27.09.2017 (nesse precedente, foi dito que não há impedimento à determinação de apresentação da porta lógica e que o provedor que pretende esquivar-se da obrigação imposta por determinação judicial deve comprovar sua impossibilidade de cumprir a determinação).

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A regulamentação que será feita pela Justiça Eleitoral

Como se sabe, a justiça eleitoral exerce poder regulamentar no que diz respeito à aplicação da lei eleitoral (art. 23, IX do Código Eleitoral; art. 105 da L. 9.504/97) e, especificamente com relação à internet, o art. 57-J da L. 9.504/97 também contempla a possibilidade do TSE expedir resoluções para regulamentar os arts. 57-A e 57-I da Lei das Eleições.

O exame do conteúdo das minutas das Resoluções (disponíveis no site do TSE) dão valiosas pistas de como pretende se portar esta Justiça Especializada nos processos eleitorais:

(a) pretende-se fazer uma intervenção judicial mínima no que diz respeito a retirada de conteúdo, favorecendo com isso a livre circulação de ideias, especialmente do eleitor (que pode desde sempre formular críticas e externar apoios em suas manifestações, sendo vedado apenas a divulgação de fatos sabidamente inverídicos e conteúdo que seja ofensivo à honra); (b) no que toca à vedação ao anonimato, a minuta de Resolução para propaganda (art. 25) veda o anonimato, mas prescreve que a retirada do conteúdo exige, além dele, a ocorrência de ofensa moral;

(c) a indicação quanto à insuficiência do anonimato da publicação (conceito aqui tomado como ausência de indicação do nome do autor do conteúdo) fica evidenciada pelo art. 33, § 2º da minuta, que prescreve que somente se pode determinar a retirada do conteúdo se, após o procedimento para a identificação do responsável por meio de ordem judicial, continuar a ser impossível a aferição de quem é o real responsável pelo conteúdo;

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(d) da minuta de Resolução para propaganda eleitoral, não se inseriu a informação da porta lógica entre as informações que devem ser dadas para fins de identificação do responsável pelo conteúdo questionado (art. 32, V e VIII).

Irretocável a pretensão da Justiça Eleitoral e fazer uma intervenção mínima nos conteúdos divulgados na internet a fim de favorecer a liberdade de expressão e de crítica política. Contudo, não se deve elogiar a Minuta de Resolução do tratamento que pretende dar à questão do anonimato.

É que, se pretende adotar o conceito de a identificabilidade do usuário descaracteriza o anonimato na internet, deveria a Justiça Eleitoral exigir dos provedores de conexão e de aplicação o fornecimento da Porta Lógica, especialmente porque o poder normativo da Justiça Eleitoral referente à internet pode e deve considerar o cenário e as ferramentas tecnológicas existentes em cada pleito, além da crescente preocupação (justificável à luz dos recentes acontecimentos nas eleições presidenciais americanas) de atuações ilegítimas que desnaturem o resultado do pleito eleitoral (valor que é tutelado no plano constitucional pelo art. 1º, parágrafo único e pelo art. 14, § 9º da CF/88).

Mas, a despeito de não ter havido a inserção da obrigação de guarda e fornecimento das portas lógicas pela minuta da Resolução do TSE (reproduzindo o conteúdo do Marco Civil da Internet), deve-se entender que não há empecilho à determinação judicial de apresentação do dado.

Possibilidade da decisão judicial determinar a apresentação

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dos dados referentes às portas lógicas

Ainda que se possa objetar que não há exigência legal à manutenção de tais informações (especialmente pelos provedores de aplicações) e que haveria um custo elevado na implementação do dever geral de guarda das portas lógicas de acesso, não se pode desconsiderar, à luz do cenário e das ferramentas tecnológicas hoje existentes (que deve ser considerado em razão do art. 57-J da L. 9.504/97 e ainda como dado hermenêutico conforme o art. 6º da L. 12.965), que os maiores e mais importantes provedores de aplicações (tais como o Facebook, Google e Microsoft) têm nas publicidades uma fonte considerável de receitas, o que milita em favor da conclusão de que têm condições técnicas de guardar as portas lógicas de conexão pois, do contrário, não seriam tão eficientes na venda de anúncios dirigidos a públicos específicos.

Não se pode pretender fazer uma interpretação engessada da L. 12.965, especialmente porque o art. 6º contém cláusulas de porosidade desse sistema normativo a fim de possibilitar que a aplicação da norma acompanhe a evolução tecnológica.

Entender de forma contrária significaria condenar o Marco Civil da Internet, em questão de poucos anos, à morte jurídica pela sua inaptidão de regular adequadamente as relações sociais travadas na rede mundial de computadores.

Se as portas lógicas beneficiam os usuários da rede, mas também possibilitaram a continuidade da exploração comercial da internet (a custos mais reduzidos do que com a implementação do IPv6, que faria desaparecer o problema), não se pode deixar de considerar que a autorização de seu uso gerou a todos os que exploram comercialmente a internet um ganho que deve estar acompanhado do dever de possibilitar a individualização daquele que faz mau uso de um IP compartilhado, já que a possibilidade de responsabilização por ilícitos e excessos (art. 7º, I e pelo art. 10, § 1º da L. 12.965) é a face reversa da moeda da liberdade de expressão e da inimputabilidade da rede.

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CONCLUSÃO

Sendo assim, e considerando-se a vedação constitucional ao anonimato e a plena e eficaz indicação do responsável pelo ato ilícito como princípio valioso do Marco Civil da Internet, não pode haver outra conclusão que não seja a de que, a despeito da redação do art. 5º, VIII da L. 12.965 (que faz alusão apenas ao IP), é possível que o Poder Judiciário, em demanda que veicule pretensão de obrigação de fazer, exija que tanto o provedor de conexão quanto ao provedor de aplicação apresentem as informações relativas às portas lógicas por interpretação ampliativa que se deve fazer em razão do art. 10, § 1º da L. 12.965 eximindo-se de tal obrigação o provedor de aplicação somente nos casos em que, comprovadamente, fique demonstrado que o provedor não guarda, para qualquer uso (inclusive comercial e publicitário) as demais informações (como a porta lógica) que sejam eficazes para a identificação do autor de qualquer conteúdo que afronte as normas eleitorais.

*Marcelo Santiago de Padua Andrade, advogado militante na área de Direito Eleitoral; Mestre em Processo Civil pela PUC/SP; Graduado pela Faculdade de Direito da USP.

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