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'Precisamos fazer uma revolução no modo como o Judiciário funciona', diz ministro Luis Roberto Barroso

Ministro do Supremo Tribunal Federal defende um debate conjunto de integrantes da Suprema Corte e do Judiciário para transformar sistema judicial brasileiro

Por Fabio Serapião
Atualização:

Ministro Luís Barroso Foto: Estadão

Há três anos ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso acredita que o Judiciário, pela primeira vez na história do Brasil, está 'enfrentando e derrotando uma cultura de compadrio e de cumplicidade com uma classe dominante desonesta'. Em entrevista ao Café com Justiça do Estadão, o ministro expôs suas ideias para, segundo ele, revolucionar o sistema judicial brasileiro e posicionou-se sobre temas como a Lei Ficha Limpa, combate à corrupção e a possibilidade de membros do Judiciário serem investigados pela Lava Jato.

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O atual momento, compara Barroso, pode ser retratado com uma analogia ao filme Match Point, do diretor Woddy Allen. Para o ministro, estamos naquele momento em que se aguarda para saber se a bola sacada pelo tenista, após resvalar na rede, cairá fora ou dentro da quadra.

"A bola pode cair do lado errado, se a reação vencer e tudo ficar parecido como sempre foi, ou a bola cair do lado certo e estarmos mudando de patamar na sociedade brasileira", explica-se Barroso. Advogado e professor de Direito Constitucional, Barroso defende que apenas uma ação coletiva dos integrantes do Judiciário poderá garantir que as conquistas do últimos anos sejam consolidadas e que outros problemas sejam enfrentados.

No entendimento do ministro, a revolução começa com um "choque de criatividade e de pensamento original" que passa pelo estabelecimento de um tempo determinado para a duração dos processos na 1ª Instância e pela criação de uma cultura em que disputas judiciais terminem na 2ª Instância.

Autointitulado "moderado otimista", Barroso defende a Lei da Ficha Limpa, a prisão após a condenação em 2ª Instância e vislumbra um país do futuro onde não será necessário o surgimento de heróis do combate à corrupção, como o ex-ministro Joaquim Barbosa e o juiz Sergio Moro, porque o medo da punição efetiva vai desestimular o ganho fácil da corrupção.

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Leia a íntegra da entrevista:

ESTADÃO: É possível o Judiciário funcionar ganhando 28 milhões de processos no último ano. A população pode esperar que um dia ele funcione de maneira satisfatória?

Ministro Luís Roberto Barroso: Dizer que o sistema não funciona seria excessivo e injusto, mas acho que o sistema Judicial brasileiro tem muitos problemas e problemas graves, ele não está funcionando de maneira satisfatória para atender as demandas da sociedade brasileira. E, portanto, tudo que não esteja funcionando bem precisa ser repensado, precisa de um choque de criatividade, de pensamento original, para ser reformado. Portanto, a premissa de que não funciona bem eu acho que é verdadeira. A segundo premissa que precisamos estabelecer como uma meta muito importante é a razoável duração do processo. Significa que um processo deve durar entre 3 e 18 meses - 3 meses ser for simples e 18 caso seja mais complexo - e desenvolver uma cultura que produza esse resultado. Nós nos acostumamos com processos que duram 5 anos, 8 anos, 10 ou 12 anos. Aceitar isso com naturalidade é perder completamente a capacidade critica do próprio trabalho. Nós precisamos fazer uma revolução no modo como o poder Judiciário funciona. Além disso, temos uma terceira premissa, é preciso criar uma cultura de que o devido processo legal se realiza em dois graus de jurisdição, o primeiro e o segundo. Idealmente, a maior parte dos processos deveria acabar no primeiro grau de jurisdição, em que a pessoa obtém um pronunciamento estatal sobre aquela questão, e pronto. Mas isso, talvez, seja um choque excessivo ainda no Brasil, embora essa deva ser a meta. Mas no segundo grau o processo tem que acabar, tem uma decisão de um juiz singular e tem uma decisão colegiada. Acabou, vai embora para a casa, transita em julgado.

ESTADÃO: Como inciar essa revolução?

Luís Roberto Barroso: Não há solução mágica para nada, há muitos passos a serem dados. Um que acho que vamos ter que incorporar e que irá impactar decisivamente no primeiro grau é o juiz estabelecer um cronograma para o processo, o juiz ter controle do processo. Ao receber o processo ele manda citar o réu ou acusado, vai receber a contestação e a defesa, ao receber ele vai ter a avaliação da complexidade daquele processo. Naquele momento, ele vai marcar a data em que vai levar o processo concluso para decidir. Por exemplo: o processo entrou em fevereiro, ele vai olhar e vai indicar que em agosto vai levar o processo concluso para decidir e as partes terão que produzir até lá as provas a serem utilizadas. Isso, evidentemente, precisa de uma mudança que é reduzir o oficialismo no processo brasileiro, tanto no cível como no criminal. As partes terão que ter mais liberdade na produção de provas. Por exemplo: para ouvir testemunhas basta que tenha um serventuário ou um notário e uma câmera. As próprias partes vão contratar a produção das provas técnicas. Vamos tratar o sistema com seriedade, punir quem fraude o sistema. Depois do período demarcado, as partes vão entregar as provas para o juiz e ele irá decidir. Temos uma cultura procrastinatória no processo brasileiro, o processo só serve para quem não tem razão fazer com que ele se prolongue indefinidamente. Precisamos dar um choque de mentalidade, cultural, de gestão um choque de seriedade no processo brasileiro.

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ESTADÃO: Isso na primeira instância e na segunda?

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Luís Roberto Barroso: Se resolve o gargalo no primeiro grau, o segundo não é um problema. O grande problema do segundo grau é que ele é uma instância de passagem, quando deveria ser de chegada final. Quem vai ao segundo grau é só para a partir dali chegar a um tribunal superior. O tribunal de segundo grau tem que ser, como regra geral, o fim do processo. 99% dos processos deveriam terminar ali. Jurisdição de tribunal superior, em toda parte do mundo civilizado, é a exceção. Portanto, os tribunais superiores vão ver daquelas causas decididas na segunda instância, quais são aquelas que tenham a importância tão transcendente - seja porque impacta muita gente, ou por ser questão moral, política ou social relevante - que mereçam ser selecionadas para novo julgamento. É preciso minimizar a jurisdição superior, ela é para se ditar as grandes linhas jurisprudenciais do País. A Justiça se produz no primeiro e no segundo grau. O segundo grau não precisa de muitas mudanças, basta que se tenha consciência de que o processo vai acabar ali. È preciso valorizar tanto o juiz de primeiro grau, como o de segundo grau porque o papel deles agora vai ser mais importante. Nos tribunais superiores a mesma revolução é imperativa.

ESTADÃO: E como resolver o problema do excesso de processos no STF?

Luís Roberto Barroso: Só os números do primeiro semestre desse ano já são chocantes. Foram distribuídos mais de 44 mil processos, dá quase 5 mil processo por ministro. Isso é pior que absurdo, isso é ridículo. Não há como funcionar um sistema assim. O acesso ao STF via Recurso Extraordinário, que é a principal forma de se chegar ao STF, hoje em dia tem um filtro, que é repercussão geral. Um modo de consertar o sistema, independentemente de lei, é, talvez, uma mudança de atitude e de regimento no STF no tratamento da repercussão geral. A grande premissa filosófica que deve nortear a jurisdição do STF, em matéria de Recurso Extraordinário, é: não é possível dar mais repercussão geral do que o tribunal seja capaz de julgar em um ano. Porque como o reconhecimento de repercussão geral faz com que todos os processos sobre aquele tema fiquem sustados na origem, quando você dá repercussão geral você começa a atrasar os processos no país. Então, não se pode dar repercussão geral em situações que não se pode julgar em um ano. A premissa é essa: só posso dar repercussão geral para julgar recurso extraordinário em quantidade que o tribunal possa julgar em um ano. Minha proposta é que a seleção dos casos com repercussão geral seja feita por semestre. Em junho seleciona-se um lote e em dezembro outro lote. O critério tem que ser comparativo, vão ter repercussão geral os casos mais importantes daquele semestre. Como temos um estoque imenso, acho que o tribunal só pode dar 20 repercussões gerais por semestre. E com isso vamos resolver o problema para a frente. Temos, geralmente, 20 quartas-feiras por semestre, o principal dia de atuação do plenário do STF. Minha proposta é: as 20 repercussões gerais reconhecidas em junho de 2016 vão começar a ser julgadas em fevereiro de 2017. A primeira repercussão vai ser julgada 1º de fevereiro, a repercussão geral 2, no dia 8 de fevereiro e assim sucessivamente. Com isso, o STF passa a ter uma agenda previsível e racional, os ministros vão saber com antecedência de seis meses os casos que vão julgar e os advogados vão saber a data do julgamento. Portanto, é preciso um sistema em que haja uma limitação na voracidade de julgar, com fixação de datas e um calendário. Com isso, resolvemos o problema da repercussão geral para frente, nada vai levar mais que um ano para ser julgado.

ESTADÃO: E o estoque que já existe?

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Luís Roberto Barroso: Há um estoque de 320 repercussões gerais reconhecidas. Nesse primeiro semestre conseguimos julgar 11. Mantendo essa média dá 22 por ano. Basta fazer a conta: dividindo-se 320 por 22, dá mais de 14 anos. Não há jurisdição que possa ser prestada em 14 anos, portanto, houve um erro e é preciso consertar para trás. Acho que cada relator deveria olhar no seu estoque de repercussões gerais quais, verdadeiramente, não merecem estar ali e fazer uma redução drástica. Sobretudo, nos casos em que as decisões de origem são boas decisões. Portanto, um caminho é retirar a repercussão e reduzir o estoque. Além disso, eu proponho a criação de uma terceira categoria nova e simples e que, talvez, nem dependa de lei. Nós temos os casos em que se dá a repercussão geral que são votadas no plenário virtual; temos os casos em que o tribunal nega a repercussão e acho que precisamos de uma nova categoria: dos casos que não foram selecionados naquela safra, nos quais, portanto, não haverá pronunciamento sobre repercussão geral da tese. Só o caso concreto transitará em julgado. Aquela matéria, se chegar ao tribunal no ano seguinte, em que ela seja um dos mais importantes daquela safra, você seleciona e vai ter um pronunciamento do tribunal. Precisamos, no Brasil, incorporar um mínimo de pragmatismo e aceitar a realidade. A realidade é que temos um número máximo de processo que podemos julgar e, portanto, não devemos criar uma ficção burocrática de que se os processos ficarem acumulando por 3, 4 anos aqui nós estamos fazendo uma coisa melhor. Na verdade, estamos fazendo uma coisa pior.

ESTADÃO: Diminuir o foro por prerrogativa de função é um caminho?

Luís Roberto Barroso: Sou, radicalmente, contra o foro por prerrogativa por função como ele é atualmente. Acho que ele deve ser drasticamente reduzido para meia dúzia de autoridades. Sou a favor da criação de uma vara federal, especializada, de primeiro grau, em Brasília, com competência para julgar os casos que hoje têm foro privilegiado. Com juiz que seja escolhido pelo STF, que vai ter um mandato de quatro anos, com quantos auxiliares ele precisar. Ao final dos quatro anos ele é promovido para seu tribunal para não dever favor a ninguém. Dessas decisões cabe recurso para o STF ou STJ, dependendo da autoridade. Acho que o grande problema do foro por prerrogativa, pior do que atravancar a vida do STF, é uma certa desmoralização que ele provoca. O STF não consegue julgar, como regra geral, a tempo e a hora, com a eficiência de um bom juiz de primeiro grau, porque temos duzentas outras coisas muitos importantes para fazer. Essa semana eu vou julgar, sou relator de um caso em que vai se decidir, se para fins de sucessão hereditária o código civil pode tratar diferentemente a mulher casada e a companheira em união estável. Isso afeta milhões de pessoas no Brasil, essa é uma questão importante. Portanto, se acaba passando na frente as grandes questões nacionais e essas questões criminais acabam retardando-se e às vezes prescrevem, ou a punição vem tarde demais. Ou, ainda, quando está em vias do processo ser julgado, o parlamentar renuncia ao mandato. O maior problema não é atravancar o STF, é a desmoralização que faz parecer que o STF é cúmplice de um modelo de impunidade de políticos que cometem atos de delinquência. Temos que tirar isso do colo do Supremo faz mal para o País, para o Supremo e para a classe política. Nós precisamos recuperar a imagem da política. Na Democracia, a Política é um gênero de primeira necessidade.

ESTADÃO: Em 2004, o juiz Sergio Moro, em artigo sobre a operação Mãos Limpas, apontou algumas dificuldades para naquela época termos uma operação como a italiana. Entre elas, ele citava a questão do foro e o modo de nomeação de ministros do STF que deixava a corte exposta a forças políticas. 12 anos depois, esse é o cenário ainda?

Luís Roberto Barroso: Eu acho que os juízes dos tribunais superiores, do Supremo inclusive, que se movem por categorias essencialmente políticas, se é que existem, são muito poucos. A prevalência é de uma valoração técnica. È claro que um Tribunal Constitucional, em qualquer lugar do mundo, tem uma dimensão política, mas crime é crime e valorar se um determinado ato foi de violação a uma lei penal, não é uma atitude política, é uma atitude técnica. Acho que a grande maioria dos juízes aqui se move tecnicamente. Acho que o julgamento da Ação Penal 470 (Mensalão) demonstrou isso. O que, inegavelmente, ocorreu no Brasil e vale para o Supremo também, foi uma mudança geral de mentalidade. Havia uma certa leniência, tolerância, uma certa resignação com práticas que se consideravam inevitáveis e, na verdade, elas são evitáveis e inaceitáveis. Portanto, a criminalidade política, que fazia um pouco parte da cultura geral do País, deixou de ser aceita e aceitável, o País mudou, a sociedade mudou e acho que, consequentemente, mudou a percepção desses fenômenos por parte dos juízes do Supremo. Os ministros do Supremo não vivem em Marte ou em outro mundo, eles vivem na sociedade. Eles jantam em casa, ouvem a mulher e a sogra, leem os jornais, andam nas ruas, têm amigos. Portanto, o ministro é capaz de perceber o sentimento social. Acho que estamos enfrentando e derrotando uma cultura de compadrio, uma cultura de cumplicidade com uma classe dominante desonesta no Brasil. Uma classe dominante que, como o direito penal não produzia nenhum efeito relevante sobre ela, porque ela estava imune ao alcance do direito penal, se tornou uma classe dominante cheia de delinquentes. Um país de ricos que fraudam licitações, subornam, lavam dinheiro. Tudo isso porque o sistema penal era tão ineficiente que ser honesto era uma escolha pessoal, não havia nenhuma consequência relevante. Esse é o País que acho que estamos começando a mudar, quer dizer, agora a criminalidade do colarinho branco vai ser punida também. Portanto, os juízes e tribunais brasileiros vão se acostumar que a Justiça não é só para prender menino com 100 gramas de maconha, aliás, esse talvez nem devesse ser preso. A Justiça também vai prender empresário que frauda licitação e político que recebe dinheiro para colocar contrabando em medida provisória. Eu acho que se criarmos uma cultura em que não apenas os pequenos bandidos, mas os grandes também, comecem a ser punidos a consequência é que vamos ter menos bandidos. Essa é mudança que estamos fazendo.

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ESTADÃO: Há um disputa, atualmente, entre aqueles que defendem uma reforma nas leis de combate à corrupção, no caso as 10 Medidas de Combate à Corrupção, e quem pretende outras reformas, que são apontadas como "afrouxamentos" nas leis para combater esse tipo de crime. O senhor analisa como esse canário?

Luís Roberto Barroso: No Estado Democrático tudo deve ser feito de acordo com as Constituição e com as leis. Há dois extremos muito ruins. O da impunidade, de um país em que pessoas eram tão ricas e tão poderosas que se tornavam imunes, isso é um desastre e foi isso que nos trouxe até aqui. E, outro extremo negativo, é um Estado policial, cheio de vingadores mascarados e voluntarismos punitivos. Os dois extremos são péssimos. Nisso, como em quase tudo na vida, aristotelianamente, a virtude está na mediania, no caminho do meio. O Direito penal deve ser moderado, mas sério, e deve ser aplicado e executado com proporcionalidade, respeito aos direito de defesa, ao contraditório e em prazo razoável. Precisamos produzir uma cultura de equilíbrio geral, em que o juiz não seja transigente com uma cultura de procrastinação que se criou no Brasil, mas respeitando os direitos da defesa. Somos uma Democracia jovem e estamos trabalhando nossas instituições para construir esse caminho do meio. Eu não acho que , no geral, tenha havido arroubos punitivos, mas, pontualmente, onde eles ocorram, o Judiciário tem que saná-los. Acho que com o tempo vamos deixar de ser o País das operações, vamos ser o país em que o funcionamento institucional normal desincentivara a criminalidade e punirá quando ela pontualmente ocorrer. O que temos hoje no Brasil, esse é o problema, é que um Direito Penal absolutamente ineficiente a partir de pessoas que ganhassem mais de 4 salários e que cometessem crimes de colarinho branco, fez com que houvesse uma criminalidade econômica de massa. Quase toda licitação relevante tem algum problema, quase toda estatal relevante você tira a tampa e tem problemas. Estamos vivendo a crise de um país em que a delinquência se generalizou como regra. Esta é a razão da crise que estamos vivendo. Se criarmos um Direito Penal moderado, mas sério, capaz de funcionar como prevenção geral contra esse tipo de delinquência, daqui a pouco não vamos mais precisar disso e não teremos mais crises. O país tem heróis em matéria de Direito Penal, como foi o ministro Joaquim Barbosa no Mensalão e o juiz Sergio Moro na Lava Jato, porque esta é a exceção. Se a regra fosse punir corruptores e corruptos pelo país afora eles não seriam heróis. Eles são heróis porque mudaram um paradigma de leniência e de tolerância e ofereceram bons exemplos. Na medida em que isso se multiplique, não é que vai criar um pais mais punitivo, vai se criar um país onde as pessoas vão delinquir menos, porque o temor da punição efetiva vai desestimular o ganho fácil da corrupção.

ESTADÃO: Há quem queira rever a Ficha Limpa e a prisão após a segunda instância será votada novamente, teremos retrocessos?

Luís Roberto Barroso: Não se faz transformações importantes na sociedade sem reações. Estamos atrasados porque o atraso é bem defendido. Portanto, superar o atraso não é fácil. E superar o atraso dentro da legalidade institucional e democrática é menos fácil ainda. Portanto, de novo, ninguém defende os extremos, é preciso trafegar no caminho do meio. Eu acho que a lei da Ficha Limpa, no seu núcleo essencial, que é impedir quem tenha sido condenado por órgão colegiado de se candidatar é um grande avanço. Exigir trânsito em julgado em um País que não está acostumado com processo acabar significa impunidade. Acho que a Lei é boa, correspondeu a uma demanda social importante, por decência política e moralidade administrativa, e eu a defendo. O que não significa crítica a quem entenda diferente. Cada um com a sua verdades e as suas opções na vida. A mudança quanto a poder executar a condenação criminal depois do julgamento em segundo grau é uma revolução silenciosa no Brasil para acabar com a impunidade no andar de cima. A verdade é que temos uma cultura da procrastinação, sobretudo no processo criminal, de modo que advogados interpunham recurso atrás de recursos simplesmente para impedir que o processo chegasse ao fim. Isso é péssimo para os advogados, para o sistema de Justiça e, portanto, o STF está contribuindo para acabar com isso. Em todo o mundo, após a sentença do segundo grau, a pessoa vai cumprir a pena, essa é a regra geral. Aqui, se criou a cultura de que depois da condenação de segundo grau tem mais 10 anos, 5 anos no STJ e mais 5 anos aqui no STF. Logo que entrei no STF, eu venho da advocacia, eu disse que é preciso repensar o sistema. Um sistema desmoralizado não serve nem ao advogado e nem a sociedade. Porém, há uma certa acomodação a um sistema que não funcionava e, portanto, não veio da advocacia uma sugestão relevante. Então, o STF está fazendo por mudança de jurisprudência. A execução no segundo grau, no caso do STF, é imperativo, o índice de provimento de recursos extraordinário aqui é irrisório. Era a única fórmula de se dar alguma seriedade à Justiça Penal brasileira. Acho que o STF fez bem e será uma pena se voltar atrás. É possível que ali na frente, na esquina do tempo, tenha que se fazer algum reajuste. Mas, nós precisávamos sair da absoluta impunidade, disfuncionalidade e desmoralização do sistema de Justiça penal que era o que estava vigorando no Brasil.

ESTADÃO: A Lava Jato corre risco caso investigue o Judiciário?

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Luís Roberto Barroso: Quando comecei minha vida adulta, minhas grandes aflições eram: como acabar com a tortura, como acabar com a censura e como criar instituições e uma cultura democrática. Eram objetivos que pareciam muito distantes e difíceis. Passada uma geração, esses objetivos foram realizados. Estou dizendo isso para contrastar com a agenda de hoje, que envolve como melhorar o sistema político, como melhorar o sistema de Justiça que começa a funcionar melhor. De modo que nossos objetivos hoje, difíceis como pareçam, são muito mais fáceis do que os que tínhamos há 30 anos. E todos factíveis. Em uma democracia, ninguém é intocável - nem ministro do Supremo, nem presidente, nem senador. Eu acho que nós estamos, aos poucos, criando uma cultura igualitária no Brasil, uma cultura que valha para políticos e sociedade civil, para ricos e pobres. A Democracia significa precisamente não haver juízo prévio sobre o status da pessoa. O Brasil, historicamente, vinha sendo um país em que havia pessoas invisíveis de tão pobres e pessoas imunes de tão ricas e poderosas. Ainda somos um país extremamente desigual, mas estamos acabando com os invisíveis e com os imunes, isso é um avanço. Mas a história é um processo, é um ciclo. Temos que ter a indignação para fazê-la avançar, mas uma certa resignação para não ficar amargo, porque as coisas não avançam na velocidade que a gente deseja. Mas o papel de quem tem compromisso com a causa da humanidade é empurrar a história na velocidade possível. Acho que fazemos parte de uma geração que está ajudando a empurrá-la, mas a História como a Biologia, tem seus prazos, os seus ciclos. As coisas têm um ciclo de amadurecimento e temos que ter a paciência e a persistência para fazê-las andar. Precisamos criar esse caminho do meio, que derrote a impunidade sem criar um Estado policial. Vejo com um moderado otimismo o momento em que vivemos em termos de mudança de patamar civilizatório. A batalha não está ganha, mas há uma sociedade mobilizada e muita gente no Judiciário que hoje em dia tem a percepção de que é preciso fazer essa agenda avançar. Vale uma analogia ao filme Match Point, do Woody Allen, em que ele começa com uma bola de tênis que bate na faixa da rede, sobe e, por alguns segundos, você fica sem saber se a bola vai cair de um lado ou de outro. No final do filme, uma cena análoga se repete e é decisiva para o desfecho do filme. Acho que estamos nesse momento: a bola pode cair do lado errado, se a reação vencer e tudo ficar parecido como sempre foi, ou a bola cair do lado certo e estarmos mudando de patamar na sociedade brasileira. Não para criar um estado punitivo, mas para criar um estado onde as pessoas cumpram a lei espontaneamente, inclusive pelo risco de serem punidas caso não o fizerem.

ESTADÃO: O Judiciário, em especial o STF, não tem atuado além de seus limites?

Luís Roberto Barroso: Acho que o Brasil vive um momento em que a Política enfrenta dificuldade, houve um certo refluxo da política e uma certa dificuldade do Congresso de ocupar com decisões legislativas espaços que lhe são próprios. Isso dependerá de uma reforma política que restitua este espaço de funcionalidade ao Congresso. Decisões políticas, como regra, em uma Democracia, devem ser tomadas por quem tem votos. Devem ser tomadas no Congresso. Sou defensor de uma reforma política que restitua o protagonismo e a centralidade ao Congresso. Porém, nesse momento de dificuldade de se produzirem consensos e de legislar sobre questões importantes, elas acabam desaguando no STF. Espero, torço e vivo para o dia em que a Política e o processo legislativo reocupem seu espaço. A judicialização é, em parte, a inevitabilidade de o Judicá rio atender certas demandas sociais que não foram atendidas a tempo e a hora pelo processo político majoritário. Eu espero uma volta de equilíbrio. Não é o Supremo que está interferindo é o Legislativo que não está conseguindo legislar.

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