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Nem descriminalização nem punição: Integração

* Por Fábio Rodrigues Franco Lima

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Por Redação
Atualização:

José, pai de família e empresário, ao longo do tempo foi desenvolvendo compulsão pelo álcool e hoje enfrenta um processo de divórcio, dadas às constantes agressões a sua mulher e a seus filhos. Marcos pratica pequenos furtos para aquisição de drogas e é réu em um processo criminal. A adolescente Joana, autora de um ato infracional, é usuária ainda esporádica de maconha e reúne todos os fatores para se tornar uma usuária abusiva e migrar para outras drogas. Diante desta problemática, se questiona: as drogas são somente um problema da saúde pública e não da Justiça?

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A descriminalização é pauta do dia no STF. Mas será que ela, por si só, traria benefícios à saúde pública e à população? Ou seria possível se levar "saúde à Justiça", desenvolvendo-se ações integradas entre justiça, saúde e comunidade para tratamento ou prevenção de usuários e familiares?

Primeiro ponto para não se descriminalizar - o uso de drogas não atinge somente o usuário. Na área da saúde, há uma classificação conforme o padrão de consumo das drogas: a) uso ocasional (não há prejuízos ao usuário ou a terceiros); b) uso abusivo (já há certos danos ao usuário ou a terceiros, em seu meio familiar, de estudo, de trabalho etc.); c) dependência química (diagnosticado por critérios de saúde, o padrão de consumo e os prejuízos se intensificam).

São notórios os prejuízos a terceiros e à sociedade causados pelo usuário abusivo e pelo dependente, tamanhos os impactos aos sistemas de saúde, de segurança pública, as mortes e acidentes no trânsito, a violência social e familiar, etc. Muitos se consideram meros usuários ocasionais, quando na verdade já se instalou o uso abusivo ou a dependência. O desespero e a angústia tomam seus familiares, que não sabem como e a quem recorrer. Mas mesmo para os verdadeiros usuários ocasionais, estudos revelam que a descriminalização traria uma sensação de legalização, o que fomentaria o uso. Temos uma exemplar política antitabagista, cujas restrições e limites ao livre arbítrio de fumantes criaram uma cultura de saúde na população, diminuindo-se o consumo e fomentando a busca de tratamento. Somos esquizofrênicos, então? Para cigarro, aperto; para maconha, cocaína e crack, abertura?

Segundo ponto - a descriminalização isolaria ainda mais a Justiça nesta área de atenção às drogas, quando devemos integrá-la. O Judiciário não filtra as pessoas a ele submetidas e não julga somente crimes de porte de drogas para uso próprio. Mesmo com a descriminalização, milhares de dependentes e usuários abusivos de drogas continuarão figurando em outros processos cíveis e criminais pelo país. Questiona-se: continuaremos com uma Justiça que apenas atua na "acusação, defesa e julgamento"? Como não construímos um sistema integrado de tratamento com a Justiça, este usuário não tratado continuará retroalimentando a violência em seu meio familiar e social e continuará se envolvendo em outros conflitos, outros boletins de ocorrências, outros processos cíveis e criminais.

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Terceiro - o tema necessita de mais debate, inclusive estudando projetos já existentes, como o Projeto sobre Drogas coordenado pelo Ministério Público e pelo Judiciário em São José dos Campos/SP. O projeto desenvolveu ações integradas entre segurança, saúde, Justiça, universidades e recursos comunitários para se possibilitar ao familiar e ao usuário envolvido em um processo judicial a sua inserção a um programa de tratamento.

O projeto inicia-se com os órgãos de segurança, que encaminham familiares e usuários envolvidos em uma ocorrência policial a serviços de saúde. Neste local, em parceria com universidades, em uma abordagem de reflexão e orientação, busca-se o início de um vínculo para sua futura inserção a um programa de prevenção ou de tratamento, se necessário.

Em um segundo momento, dezenas de usuários e familiares comparecem a uma audiência judicial coletiva e assistem inicialmente a uma palestra. Familiares são atendidos e encaminhados a programas de apoio, se desejarem. Já os usuários são divididos em várias salas, onde equipes multidisciplinares aplicam o processo circular da Justiça Restaurativa. Histórias de vida, os desafios e as conquistas de todos são compartilhados, o que cria conexão e permite se discutir um plano de ação. Longe de uma mera sugestão, é construído um ambiente para que o "réu" possa verdadeiramente optar pelo seu tratamento. Cumprido ou consolidado um vínculo com o tratamento proposto, o processo é arquivado. Do contrário, prossegue, embora haja estratégias de apoio e redução de danos para o usuário retornar ao programa.

O assunto é complexo e é possível o debate de diversos aspectos, como a legalização das drogas, com o Estado controlando sua produção e distribuição. Nao precisa ser mágico para se previr a criação de uma burocratizada agência reguladora das drogas, com um cacique partidário no comando, corrupção e aplicação de dinheiro público para produção de drogas, pois o Estado não pode concorrer com a informalidade e o preço das drogas do tráfico.

A descriminalização das drogas, por si só, causaria um vácuo, no qual não haveria nem Justiça nem saúde, na medida em que os serviços de saúde e de atenção às drogas ainda são desestruturados e insuficientes no país. É importante o Poder Público e a sociedade não se limitarem apenas a discussão da internação compulsória e da descriminalização, descortinando a fumaça e os estragos que as drogas lícitas e ilícitas ocasionam na sociedade. Necessitamos de uma política pública nacional que integre os diversos órgãos, serviços de saúde estruturados e uma justiça mais humana, apta a discutir os conflitos e suas causas com os jurisdicionados.

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A dependência e o uso abusivo de drogas são um problema que atinge a todos, direta ou indiretamente. Chegamos a um estado de alerta no qual apenas criticar, cruzar os braços ou fechar os olhos já não é mais possível. Sem mecanismos integrados para cuidarmos da dependência, todos somos vítimas. José, Marcos, Joana e seus familiares que o digam.

*Fábio Rodrigues Franco Lima, Promotor de Justiça, é um dos coordenadores do Projeto Comarca Terapêutica em São José dos Campos/SP.

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