Da análise do projeto de lei, constata-se que o procedimento seria distinto daquele previsto para os crimes dolosos contra a vida, abandonando-se o modelo bifásico para uma estrutura monofásica, que muito se assemelha ao procedimento ordinário.
Ainda de acordo com a justificativa apresentada, "o julgamento dos crimes de corrupção, especialmente os que envolvam valores de significativa expressão econômica, deve ser realizado pelo júri popular, já que este é uma representação direta do povo que, como já assinalado, é quem sofre as consequências dos atos praticados por servidores e políticos corruptos".
Em verdade, e com a devida vênia ao bem intencionado senador da República, o projeto deve ser refutado. As razões são várias, mas algumas merecem destaque.
Diferentemente dos crimes dolosos contra a vida, os casos envolvendo corrupção demandam, em geral, complexa prova documental e pericial (por exemplo, análises contábeis e de extratos bancários), de difícil análise pelo Conselho de Sentença, composto por jurados sem qualificação técnica. Significaria reduzir a tecnicidade do julgamento às paixões do júri.
Ademais, a instituição do júri é garantia constitucional prevista no artigo 5º, inciso XXXVIII, alíneas, da Constituição da República, assegurada especificamente aos crimes dolosos contra a vida, e submetida a uma sistemática na qual o direito de defesa deixa de ser amplo para ser considerado pleno.
Logo, não poderia o projeto instituir um procedimento distinto e menos garantístico aos casos de corrupção, olvidando-se da fase da pronúncia, sob pena de compressão da plenitude de defesa.
Além disso, é da natureza do júri que seu trâmite não seja tão célere quanto o procedimento ordinário. Isso porque, na medida em que se ampliam as garantias do acusado, consequentemente se reduz o grau de celeridade e eficiência processuais.
Basta analisar as variadas hipóteses de nulidade incidentes no procedimento do júri para se verificar que, além do elevado custo operacional (v.g.: regras de composição do Conselho de Sentença etc.), seu desenvolvimento há de ser menos célere. Aliás, em homenagem à soberania dos vereditos, eventuais recursos interpostos pelas partes poderão dar ensejo à anulação do julgamento, tornando-se necessário o refazimento dos atos, dado que não cabe ao Tribunal de Apelação contrariar, ele próprio, o julgamento de mérito do Conselho de Sentença.
A questão se torna ainda mais delicada quando se obseva que, nos casos de corrupção, não raro detentores de foro por prerrogativa de função serão acusados, deslocando a instituição do júri às instâncias superiores e abarrotando ainda mais as cortes com trabalhos procedimentais complexos.
Por fim, absolutamente arbitrária a estipulação do valor de 500 (quinhentos) salários mínimos - atualmente algo em torno de R$ 470.000 (quatrocentos e setenta mil reais) - para deslocamento da competência ao Tribunal do Júri.
Conforme justificativa apresentada no projeto de lei, "com esse 'valor de alçada', será possível filtrar os casos mais graves, e com isso impedir o acionamento do júri, instituição que tem um alto custo operacional, para situações de menor relevância".
Primeiramente, diferentemente do juízo cível, a competência criminal não se pauta pelo "valor da causa", de sorte que causa estranheza a fixação desse peculiar parâmetro. Em segundo lugar, a gravidade do crime não se pauta apenas pelo valor desviado: o modus operandi e a destinação dada aos recursos também podem representar grau elevado de reprovabilidade. Enfim, fato é que a competência do Tribunal do Júri, nos moldes em que propostos, revela açodamento na apresentação do projeto.
Outrossim, é de se notar que, apenas no âmbito da Operação Lava-Jato, já foram formalizadas mais de 60 denúncias, muitas das quais ultrapassam, com facilidade, o valor indicado no projeto.
Anote-se, ainda, que já há sentença prolatada em aproximadamente 50% dos casos, revelando satisfatória celeridade processual.
Por essas e outras razões, com a devida vênia aos que entendem de maneira distinta, deve o PLS n.º 217/2017 ser rejeitado.
*Sócio do Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevch & Schoueri Advogados e presidente da Comissão de Estudos sobre Corrupção, Crimes Econômicos, Financeiros e Tributários do IASP